domingo, 14 de janeiro de 2018

Poesia



A Poesia

E foi nessa idade... 

Chegou a poesia para me buscar. 
Não sei, não sei de onde
saiu, do inverno ou de um rio.
Não sei como nem quando,
não, não eram vozes, não eram
palavras, nem silêncio,
porém desde uma rua me chamava,
desde os ramos da noite,
de repente entre os outros,
entre fogos violentos
ou regressando sozinho,
ali estava sem rosto
e me tocava.

Eu não sabia o que dizer, minha boca

não sabia
nomear,
meus olhos eram cegos,
e algo golpeava em minha alma,
febre ou asas perdidas,
e me fui fazendo só,
decifrando
aquela queimadura,
e escrevi a primeira linha vaga,
vaga, sem corpo, pura
tontice, pura sabedoria
de quem não sabe nada,
e vi de repente
o céu
degranado e aberto,
planetas,
plantações palpitantes,
a sombra perfurada,
crivada
de flechas, fogo e flores,
a noite esmagadora, o universo.


E eu, mínimo ser,

ébrio do grande vazio
constelado,
à semelhança, à imagem
do mistério,
me senti parte pura
do abismo,
rolei com as estrelas,
meu coração se desatou no vento.

Pablo Neruda
(De Memorial de Isla Negra)


                                            Lola

sábado, 13 de janeiro de 2018

Canção Breve




Canção Breve


Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança ou o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia.

Eugénio de Andrade


A minha terra é o Porto
cidade em que me deito
invulgarmente vivida
intensamente gostada
ininterruptamente dialogada
no meu ser!
Porto
a memória de uma vida
de uma infância colorida
de uma adolescência curiosa
de uma adultez admirada
que cada vez mais...
... amanhece,
 profundamente, 
em mim!


                                            Lola

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Tenho Tanto Sentimento



Tenho Tanto Sentimento

Tenho tanto sentimento 

Que é frequente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


Porque pensei a vida muitas vezes...
quase deixei de viver;
Porque outras tantas a senti em demasia 
por pouco 
não conseguia desamarrar 
as cordas que  castravam 
o meu ser de 
Mulher, assumidamente, arrojada!


                                          Lola

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Lembra-te


Lembra-te

Lembra-te 
que todos os momentos 
que nos coroaram 

todas as estradas 
radiosas que abrimos 
irão achando sem fim 
seu ansioso lugar 
seu botão de florir 
o horizonte 
e que dessa procura 
extenuante e precisa 
não teremos sinal 
senão o de saber 
que irá por onde fomos 
um para o outro 
vividos


Mário Cesariny, in "Pena Capital"


                                          Lola

domingo, 7 de janeiro de 2018

Que mundo




Que mundo

"Mas, francamente: fé em quê? 

Num mundo que almoça valores,
 janta valores, 
ceia valores, 
e os degrada cinicamente, 
sem qualquer estremecimento 
da consciência? 
Peçam-me tudo, 
menos que tape os olhos"


Miguel Torga

Por isso, ou mesmo por causa disso, o enorme papel do pensar filosófico -   nunca seguidista, nem alinhado, nem conformado  - mas sempre comprometido  com a capacidade crítica na busca incessante de um mundo conscientemente melhor!

                                            Lola

sábado, 6 de janeiro de 2018

Feche a porta



Feche a porta

“Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é. 
Torna-te uma pessoa melhor e assegura-te 
de que sabes bem quem és tu próprio. 
E lembra-te: 
Tudo o que chega, 
chega sempre 
por 
alguma razão.” 


- Fernando Pessoa


Espero bem que sim porque  o pó...

...há muito está sacudido!





                                          Lola

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Reis Magos


Os Reis Magos

São três e chegam de longe
com um sonho na bagagem:
querem estar com o menino

antes que finde a viagem.


São magos do Oriente,
mas não são magos de rua;
acreditam nos cometas,
nas estrelas e na lua.

São os magos viajantes
que resistem à fadiga,
seguindo o rasto de luz
de uma estrela que é amiga.

São os Reis Magos que chegam
das mais remotas paragens
com ouro, incenso e mirra
que trazem de outras viagens.

São os Reis Magos Felizes,
joelho assente na terra,
com um voto e uma prece:
"menino, põe fim à guerra."

Gaspar, Baltazar e Belchior
pedem à estrela brilhante:
"Dá nome a este menino
antes que o galo cante."

Viemos aqui nesta noite
com um desejo profundo:
queremos ver o Menino
que vem dar esperança ao mundo.


José Jorge Letria


                                           Lola

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

Acabou o livro...





Acabou o livro...


Folheei pela última vez
Desenhei os meus dedos nas páginas sedosas das palavras com sabor a desejo
Agora, era apenas mais um...
Acabei de ler o livro...

Cheguei à pagina 365 e nada mais há para ler. 
Muitas páginas lidas, sonhadas e desejadamente buscadas em nome de algo por saber.
Em algumas delas houve esperança, alento, confiança; noutras de angústia, desilusão, quase desistência!
Todas elas foram cuidadosamente enfrentadas numa busca incessante de diálogos com o mundo que está lá fora! 
Agora...
...bem, agora já tenho outro livro na mão! Para ler com a mesma ousadia, a mesma avidez de sonhos a perseguir, o mesmo atrevimento de futuros em porvir!
Inteira, integra e engraçada, eis-me AQUI!
Sou tudo o que vivi e o que ainda não vivi em páginas de um outro livro a folhear devagarinho!
Sou este abraço sonhado à volta da tua face morena, porque...
não me cansarei de dizer-te muito, muito baixinho...



Adoro-te, my dear!


                                            Lola

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Mulher Triste




Retrato de Mulher Triste

Vestiu-se para um baile que não há. 
Sentou-se com suas últimas jóias. 
E olha para o lado, imóvel.



Está vendo os salões que se acabaram, 
embala-se em valsas que não dançou, 
levemente sorri para um homem. 
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha, 
levantará com desdém o arco das sobrancelhas, 
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida 
tem de abaixar as quase infantis pestanas, 
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.


Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'



                                            Lola

Cartas de Amor



Cartas de Amor



TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS


Todas as cartas de amor são
Ridículas. 

Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas.

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas.

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.)

ÁLVARO DE CAMPOS, in POESIAS DE ÁLVARO DE CAMPOS. 
FERNANDO PESSOA.[ Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993)]


Será o Amor ridículo?
Serão as cartas de amor, como expressão desse afecto,  ridículas?
Serão as memórias das cartas ridículas?
Serão ridículos aqueles que nunca escreveram cartas de amor?
Ou os que nunca experienciaram o amor?
Será a própria realidade ridícula?




                                                                                                                                       Lola

Tempo





Tempo

Tenho de me livrar do tempo e viver o presente, já que não há mais tempo do que este maravilhoso momento.



(Alda Merini)

Será possível conhecer algo sem um tempo?
Estará o tempo em nós ou nas coisas?
Que possibilidades para um tempo sem nada?
Sem tempo (que não o presente) que lugar para a Saudade, a memória, o futuro, a felicidade, o desejo, o prazer?

Que sentido(s) para o encontro 
somente nosso, my Dear?



                                            Lola

Ano Novo




Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.


Carlos Drummond de Andrade.


Para todos que, de quando em vez , por aqui vão passeando o olhar ...
um grande, um excelente ano...
... e que este comece,
 imperturbavelmente,  
dentro de cada um de nós!

                                           Lola