sexta-feira, 26 de julho de 2019

Avós






A arte de ser avó (avô) -

                  



Netos são como herança. Você ganha sem merecer.
Sem ter feito nada para isso, de repente lhe caem do céu...
É como dizem os ingleses, um ato de Deus. Sem se passarem
as penas do amor, sem os compromissos do matrimônio, sem as
dores da maternidade. E não se trata de um filho apenas suposto.
O neto é, realmente, o sangue do seu sangue, filho do filho,
mais filho que filho mesmo...




Cinquenta anos, cinquenta e cinco... Você sente, obscuramente,
nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que se esperava.
Não lhe incomoda envelhecer, é claro.
A velhice tem suas alegrias, as suas compensações:
todos dizem isso, embora você, pessoalmente, ainda não as tenha
descoberto, mas acredita. Todavia, também, obscuramente, também
sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores com suas paixões:
a doçura da meia idade não lhe exige essa efervescência.
A saudade é de alguma coisa que você tinha e que lhe fugiu, sutilmente,
junto com a mocidade. Bracinhos de criança.
O tumulto da presença infantil ao seu redor.
Meu Deus, para onde foram as suas crianças?




Naqueles adultos cheios de problemas que hoje são os filhos,
que tem sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações,
você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas.
São homens e mulheres - não são mais aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias
da gestação ou do parto, o doutor lhe coloca nos braços um bebê.
Completamente grátis. Nisso é que está a maravilha.



Sem dores, sem choro, aquela criancinha da qual você morria de
saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha,
longe de ser um estranho, é um filho seu que lhe é devolvido.
E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito de o amar com
extravagância. Ao contrário, lhe causaria espanto, decepção se você não
o acolhesse com todo aquele amor recalcado que há anos se acumulava
desdenhado no seu coração.



Sim, tenho a certeza de que a vida nos dos dá netos para nos compensar
de todas as perdas trazidas pela velhice. São amores novos, profundos
e felizes, que vem ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos
arroubos juvenis. E, quando você vai embalar o menino ao som de
"passarinho como vai" ele, tonto de sono abre os olhinhos e diz :



"Vovó", seu coração estala de felicidade, como pão no forno"


Rachel de Queiroz 
in " A arte de ser avó "

Tenho tanta SAUDADE dos meus...

Lola

domingo, 7 de julho de 2019

Lembra-te






Lembra-te


Lembra-te 
que todos os momentos 
que nos coroaram 
todas as estradas 
radiosas que abrimos 
irão achando sem fim 
seu ansioso lugar 
seu botão de florir 
o horizonte 
e que dessa procura 
extenuante e precisa 
não teremos sinal 
senão o de saber 
que irá por onde fomos 
um para o outro 
vividos 



Mário Cesariny, 
in "Pena Capital"




                                               Lola

Procuro-te



Procuro-te


Procuro a ternura súbita, 
os olhos ou o sol por nascer 
do tamanho do mundo, 
o sangue que nenhuma espada viu, 
o ar onde a respiração é doce, 
um pássaro no bosque 
com a forma de um grito de alegria. 


Oh, a carícia da terra, 
a juventude suspensa, 
a fugidia voz da água entre o azul 
do prado e de um corpo estendido. 



Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. 
Chamo por ti, e o teu nome ilumina 
as coisas mais simples: 
o pão e a água, 
a cama e a mesa, 
os pequenos e dóceis animais, 
onde também quero que chegue 
o meu canto e a manhã de maio. 



Um pássaro e um navio são a mesma coisa 
quando te procuro de rosto cravado na luz. 
Eu sei que há diferenças, 
mas não quando se ama, 
não quando apertamos contra o peito 
uma flor ávida de orvalho. 



Ter só dedos e dentes é muito triste: 
dedos para amortalhar crianças, 
dentes para roer a solidão, 
enquanto o verão pinta de azul o céu 
e o mar é devassado pelas estrelas. 



Porém eu procuro-te. 
Antes que a morte se aproxime, procuro-te. 
Nas ruas, nos barcos, na cama, 
com amor, com ódio, ao sol, à chuva, 
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te. 



Eugénio de Andrade, 
in "As Palavras Interditas" 

                                                Lola

Estórias de Mulheres...




Estórias de Mulheres...


"A Maria é professora. E também é estúpida.
Ela sabe que é estúpida porque o João, o seu marido, lho diz. Explica sempre tudo o que a Maria expressa. E o João sabe o que diz. O João não tem nenhuma formação específica e prefere o café ao trabalho. Mas o João não é estúpido porque é homem e homens não são estúpidos.

A Raquel tem 50 anos. A Raquel é velha.

Ela sabe que é velha porque o Pedro, o seu companheiro, a esclarece com frequência. Aponta-lhe os cabelos brancos, as rugas no rosto, a flacidez das mamas. O Pedro tem 55 anos. Tem cabelos grisalhos, duplo queixo e a barriga já lhe encobre a pouca masculinidade. Mas o Pedro não é velho porque é homem e homens não envelhecem.


A Filipa é estudante. E é puta.
Ela sabe que é puta porque o Miguel, o seu namorado, lho explica. Às vezes com manifestações físicas: já lhe rasgou o decote de um top, já lhe esfregou o batom pelo rosto, já a proibiu de usar certas saias.
O Miguel implora sexo a tudo o que mexe, oferece-se em praça pública, exibe-se em tronco nu. Mas o Miguel não é puta porque é homem e homens não são putas.

A Bárbara é uma mulher realizada. E é infeliz. Ela sabe que é infeliz porque a Joana, a sua mãe, a informa constantemente. Precisas de alguém que te faça feliz, repete. A Joana é casada com o Raul, pai da Bárbara. O Raul é um adúltero que se diverte a abusar psicologicamente da Joana. Continua casado por cobardia. Sente um desprezo natural pela inércia da companheira. Mas a Joana não é infeliz porque 'tem' um homem e quem 'tem' um homem não é infeliz."





A Isabel está casada há quase 25 anos. A Isabel tem um marido que nunca a traiu e que a respeita. Os dois construiram uma cumplicidade, uma empatia e um Amor que sobreviveu às provas mais duras porque se fortaleceu nelas e se alimentou nas fases mais apaixonadas. A Isabel tem quase 50, mas o Marido continua a amar cada centímetro do seu corpo, a elogiar o seu peito e a gostar de a ver vestida com roupas que realçam a sua feminilidade. A Isabel tem um marido responsável por metade das tarefas em casa, que ama incondicionalmente os seus filhos e que sempre respeitou a sua independência e carácter. A Isabel sabe que o seu marido arriscou tudo para ter uma vida melhor e que o fez com o intuito de a ter ao seu lado, sempre. A Isabel sabe que o seu marido faz amor com ela da mesma forma que sempre fez, com paixão, com entrega, com a preocupação de que o prazer dela é tão ou mais importante que o seu. A Isabel ama o seu marido. Ela sabe que há Homens e que há homenzinhos. O marido da Isabel acha o machismo tão absurdamente estúpido quanto o feminismo bacoco, e lamenta que se realce sempre os maus exemplos sem mostrar os bons. Acha que a verdadeira instrução deve ser dada com a contraposição do que está errado com o que é certo, porque falar apenas do errado não é educativo per se.



                                                Lola