quarta-feira, 27 de junho de 2018

Há dias


Há dias

Há dias em que julgamos 
que todo o lixo do mundo 
nos cai em cima 
depois ao chegarmos à varanda avistamos 
as crianças correndo no molhe 
enquanto cantam 
não lhes sei o nome 
uma ou outra parece-se comigo 
quero eu dizer : 
com o que fui 
quando cheguei a ser luminosa 
presença da graça 
ou da alegria 
um sorriso abre-se então 
num verão antigo 
e dura 
dura ainda.


Eugénio de Andrade
"Os lugares de Lume" 1998




                                            Lola

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Onde é que te doi?





Onde é que te doi?


"Fecha os olhos e imagina que és tu que estás neste barco. 
Sai da casa onde moras, do café da rua onde vives, do jardim onde tas deitado, do sitio onde trabalhas.
 Sai.
 Imagina que estás lá. 
Imagina que és tu.
 Uma destas 629 pessoas.
 Um destes 123 menores desacompanhados.
 Uma destas 7 mulheres grávidas. 
Imagina que és tu. 
E diz-me só onde é que te doi. 
Onde é que te doi tudo que viste e perdeste até chegares aqui?
 Onde é que te doi a incerteza do caminho e dos barcos que fizeste até chegar a este?
 Onde é que te doi o mar?
 Onde é que te doi os dias que já passaram e não saberes por quantos mais? 
Onde é que te doi a fome e a sede?
 Onde é que te doi já nem teres posição para as pernas?
 Onde é que te doi a noite quando fica escuro?
 Onde é que te doi o corpo cansado sem força? 
Onde é que te doi veres terra mas ela não te querer? 
Onde é que te doi quereres um país que não te quer? 
Onde é que te doi quereres uma casa que dizem que não é tua? 
Onde é que te doi mais um dia quando ja foram dias demais? 
Onde é que te doi não seres de ninguém?
 Onde é que te doi dizerem que a tua vida é ilegal? 
Onde é que te doi sentires que és só mais um, só mais um número, só mais um migrante, só mais um refugiado? 
Diz-me só onde é que te doi. 
Não sabes? 
Eles sabem. 
E vão continuar a saber enquanto acharmos que há pedaços de terra mais nossos do que de outros e que há vidas mais importantes do que outras."


Médicos Sem Fronteiras


                                            Lola

sábado, 23 de junho de 2018

SONETO À MANEIRA DE CAMÕES



SONETO À MANEIRA DE CAMÕES

Esperança e desespero de alimento

Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é meu tormento.



Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que mo dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.


Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.


Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL (1950)
 in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010)


                                            Lola

ABENDLIED

Foto by André Teixeira


ABENDLIED



O orvalho da tarde beija 
Vagamente a minha face, 

Vagamente e sem tocar; 
E em mim sem que eu queira nasce 
Uma ânsia que só deseja 
O que não pode encontrar. 
.
A lágrimas não me leva,
Mas aspira dubiamente 
Ao que nem está no porvir; 
E em mim a minha alma sente 
Onda que suave se eleva
Para suave cair. 
.
Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.

-
Fernando Pessoa 
In Poesia


                                            Lola

Assim o amor



Assim o amor 

"Assim o amor 
Espantado meu olhar com teus cabelos 
Espantado meu olhar com teus cavalos 

E grandes praias fluidas avenidas 
Tardes que oscilam demoradas 
E um confuso rumor de obscuras vidas 
E o tempo sentado no limiar dos campos 
Com seu fuso sua faca e seus novelos


Em vão busquei eterna luz precisa"



Sophia de Mello Breyner Andresen.

in “Obra Poética”



                                            Lola

Che Guevara


Che Guevara


Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo 
                                                                  [dos patetas 
A indecisão dos complicados e o primarismo 
Daqueles que confundem revolução com desforra 


De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de 
                                                                [consumo 
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das 
                                                                [igrejas 



Porém 
Em frente do teu rosto 
Medita o adolescente à noite no seu quarto 
Quando procura emergir de um mundo que apodrece 



Sophia de Mello Breyner Andresen, 
in "O Nome das Coisas" 

                                            Lola

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Cristiano Ronaldo



Génio...isto é de génio!
 Eu podia ver isto o dia todo!
 Obrigado,Cristiano Ronaldo!


                                            Lola

Cristiano Ronaldo



Cristiano Ronaldo

Aquele golo


O livre de Cristiano Ronaldo foi um jogo à parte. Foi um livre como música. Tocada por Miles Davis. Ou um gatafunho de Picasso a completar a única pomba do mundo.

Foi estranho o que aconteceu ao tempo durante o livre de Cristiano Ronaldo. Parou. Mas abriu só o suficiente para entrar a bola na baliza.
Foi como observar um pensamento ou um sonho de um rapaz pequeno. Estava lá a eternidade. Estava lá a ilha da Madeira. O guarda-redes ficou preso à trajectória. Todo o mundo parou. Só a bola foi autorizada a mexer-se.
Visto em directo, o golo de Cristiano Ronaldo parecia já uma repetição, em câmara lenta, de um livre muito antigo que se estuda nas universidades muito lá para o futuro, quando já estivermos todos mortos.
A bola seguiu o caminho desejado em todos os nossos inconscientes, curvando como a linha feita por um dedo a escrever o nome num vidro embaciado.
O golo interrompeu o jogo que era um vaivém de esforços e sortes e vinganças. Disse que estava farto de pressas e de incertezas e de medos. Fez com que um empate soubesse a derrota, fez com que um empate soubesse a vitória.
O livre de Cristiano Ronaldo foi um jogo à parte. Foi jogado contra a ideia que contra a Espanha ele não marcava golos. Foi jogado contra a ideia que ele já não era quem tinha sido. Foi jogado contra a noção que à Espanha ninguém marca três golos.
Foi um livre como música. Tocada por Miles Davis. Ou um gatafunho de Picasso a completar a única pomba do mundo. Foi um golo para espantar toda a gente menos o próprio marcador. Por uma vez a coisa correu como ele quis: a vontade e a realidade desistiram de andar à pancada uma com a outra. Assim se abriu uma brecha no tempo.

16 de Junho de 2018, 15:14
Miguel Esteves Cardoso







Obrigado, Capitão!

                                            Lola

Cristiano Ronaldo




Cristiano Ronaldo

Foi aí, logo no início do encontro e quando os espanhóis pareciam não ter ouvido ainda o apito inicial do árbitro, que se viu Cristiano Ronaldo entrar naquilo que, há umas décadas, os atletas americanos passaram a chamar “the zone”

A vantagem de ter o melhor do mundo do nosso lado é a de saber que ele não falha nos momentos decisivos. Foi isso que se viu, em Sochi, no embate frente à Espanha – a única outra seleção que, tal como nós, pode dizer que foi campeã da Europa de futebol na última década.
A lição foi dada logo nos primeiros minutos da estreia de Portugal neste Mundial, mal o árbitro apitou para a marca da grande penalidade: um lance conquistado por Cristiano Ronaldo de uma forma que nos fez lembrar os seus antigos tempos de extremo, rápido e desconcertante. Os tempos em que partia para cima dos defesas com um único pensamento: se me deixam passar faço golo, se não deixam… têm de me fazer falta, neste caso fazer penalti (Nacho, decididamente, já não se lembrava dos vídeos antigos de CR7…).
Foi aí, logo no início do encontro e quando os espanhóis pareciam não ter ouvido ainda o apito inicial do árbitro, que se viu Cristiano Ronaldo entrar naquilo que, há umas décadas, os atletas americanos passaram a chamar “the zone” – um estado de fluidez mental, capaz de nos fazer abstrair de tudo em nosso redor e nos deixar concentrar apenas no nosso objetivo, segundo os estudos popularizados pelo cientista Mihaly Csíkszentmihályi, de origem húngara, mas que ensinou durante anos na Califórnia, onde escreveu o livro “Flow: The Psychology of Optimal Experience”, publicado em 1990, e que foi avidamente consumido no desporto americano, em especial na NBA.
Cristiano encontrou depressa a sua “zona” no relvado de Sochi. Ainda os jogadores espanhóis estavam a pedir a intervenção do VAR, já ele tinha levado a bola para o local da falta e, serenamente, de olhos na baliza aguardava pelo apito do árbitro. Indiferente a tudo o que se passava em seu redor. Ignorando até a presença do guarda-redes David De Gea que, numa manobra normal nestes casos, tentou desconcentrá-lo, parando à sua frente, enquanto se dirigia para a baliza. Sem êxito: Cristiano estava apenas concentrado no que tinha de fazer, ainda para mais com a cabeça fresca, porque o jogo mal tinha começado.
“A partir do momento em que entras nesse estado, tu percebes que estás lá. E as coisas à tua volta começam a mover-se quase em câmara lenta e a tua concentração fica absolutamente focada no teu objetivo. De tal forma, que até consegues adivinhar o que o teu adversário quer fazer”. A citação é de Michael Jordan – proferida nos tais tempos que popularizaram o conceito da “zona” – mas poderia ter sido repetida, naturalmente, por Cristiano Ronaldo, em Sochi. Foi isso que se viu, pelo menos, com a forma como correu para a bola e chutou, com precisão, para o primeiro golo da noite, indiferente a tudo e todos.
Mais de oitenta minutos depois, Cristiano Ronaldo continuava na mesma “zona”, a demonstrar essa capacidade extraordinária de cumprir algumas das características enunciadas por Mihaly Csíkszentmihályi: completa concentração na tarefa assumida, objetivo claro, facilidade de execução, consciência e ação num único movimento, além de uma sensação plena de controlo sobre tudo o que está a acontecer na competição.
Vale a pena rever todos os momentos ocorridos entre os minutos 85 e 87, no jogo frente à Espanha. A forma como Cristiano Ronaldo recebe a bola, de costas para a baliza, à entrada da grande área, e depressa toma a decisão de a proteger… e esperar a falta do defesa. Era esse o seu objetivo naquele momento. Um objetivo claramente enunciado na forma como, imediatamente, pegou na bola e… reentrou na “zona”, apenas com os olhos na baliza, a mente a focar-se em tudo o que precisava de executar, mal o árbitro fizesse soar o apito: os quatro passos até à bola, a posição perfeita do corpo para que o seu pé direito pudesse impelir a bola numa curva perfeita sobre a barreira.
Felizmente, ficou tudo gravado em vídeo. São mais de 90 segundos nesse “estado”, com Cristiano parado, no local que delimitou em quatro passos à retaguarda, sempre a controlar a respiração, de forma lenta, e de olhos fixos no objetivo. Nos últimos momentos desse período de concentração, percebe-se que ele está absolutamente abstraído de tudo o que se passa à sua volta – podiam desabar as bancadas, registar-se uma invasão de campo nas suas costas, que ele continuaria focado única e exclusivamente na sua tarefa.
Após o apito do árbitro, deu três passos e, ao completar o quarto, chutou a bola com o seu pé direito, fazendo-a curvar pelo lado de fora da barreira – esquivando até a tentativa desesperada de Busquets, num salto inglório – fazendo-a entrar na baliza de um desconsolado De Gea. Foi um enorme golo de pé direito, é verdade. Mas foi, acima de tudo, o golo de um enormíssimo atleta que, nos momentos certos, saber entrar “na zona”. Graças à sua maior arma: a cabeça.

RUI TAVARES GUEDES
Diretor Executivo
in Visão
The Best!

Lola

Cristiano Ronaldo


Cristiano Ronaldo

Spain and Portugal Play a Draw for the Ages, Starring a Player for All Time



Ronaldo marcou pela primeira vez de livre direto num Mundial

No New York Times, Rory Smith conta como Portugal negou "um momento catártico" à vizinha Espanha. Tudo graças a um livre direto de Ronaldo. Prova de que "à 45.ª é de vez".


All Spain"s fans could do, after it was over, was applaud. There was no sense wallowing in disappointment, worrying about what it all might mean. Spain had victory snatched away at the last moment, denied a cathartic moment by its nearest neighbor, and yet there was no bitterness, no sorrow: only admiration, and awe. Sometimes, it is not the winning, but the taking part.
There surely must have been a better World Cup group game in the past than the compelling draw between Spain and Portugal on Friday. There has to have been one played at a higher standard, one richer in drama and more absorbing. And wherever, and whenever, that game was played, it must have been truly remarkable.
Because topping what occurred on Friday is no simple task. Twice, Portugal led. Twice, Spain recovered, before Nacho Fernández scored the sort of goal that is supposed to be beyond the skill of a stand-in right back. The goal gave Spain the lead for the first time in the match and put Fernando Hierro, the Spanish coach, on course for an immense victory only one game, and two days, into his job. And then Cristiano Ronaldo, yet again, intervened.
If Spain"s preparations for this game have been troubled - firing its previous coach, Julen Lopetegui, on the eve of the tournament for failing to disclose that he was about to take charge at Real Madrid - then Portugal's have scarcely been better.
Several members of the team, which won the European championship in 2016, are on the verge of rescinding their club contracts, at Lisbon"s Sporting C.P., because of intimidation by fans and a breakdown in their relationship with the club"s president.
On Friday morning, meanwhile, only a few hours before the game, it emerged in Spanish news media reports that Ronaldo himself had agreed to pay the Spanish authorities $21.8 million in unpaid taxes. He has also been given a two-year suspended jail sentence, the papers said. It would be hard to believe that these developments did not faze him as the game approached.
Still, it was Ronaldo who gave Portugal the lead, winning and converting a penalty after just four minutes of play. And it was Ronaldo who restored the lead, his shot squirming under David De Gea, the Spanish goalkeeper, as the first half drew to a close. And it was Ronaldo who, with just a few minutes remaining in the second half, lined up a free kick a little outside the Spanish penalty area with Portugal now trailing, 3-2.
He had taken 44 free kicks in previous World Cups. He had scored on none of them. Still, you know what they say: the 45th time"s a charm.
It is true that Ronaldo, at 33, is not the player he was. He is still perfectly sculpted, of course, a Men"s Health magazine cover made flesh, but the electric pace has fizzled a little; he does not cover quite as much ground (only one player, the Portuguese defender José Fonte, ran less than Ronaldo in a first half in which one of them scored twice).
But it is equally true to say that Ronaldo, even in his twilight, shines brighter than almost any player with whom he comes into contact. He has not so much faded as a player as evolved into something different. It is misleading to suggest that he has transformed into a striker, a penalty- area predator, because he is not really restricted by such mortal concepts as geography.
Instead, he has attained a level of such devastating efficiency that he now does not really require something so mundane as the ball. He does not need to be involved. He looks, often, like he is doing nothing, or something quite close to it - as if he is a mere passenger. It is an illusion. He is always in the cockpit.
Isco, his Real Madrid teammate, was the dominant player on the field here, the one who was most involved, who prompted and probed and prodded, and he was wearing a Spain jersey. Ronaldo has moved beyond needing to dictate games. He concerns himself only with defining them.
His free kick, needless to say, curled artfully, effortlessly, past De Gea and into the corner of Spain"s goal, as Ronaldo - despite all historical evidence to the contrary - must have known it would.
Portugal, which is now best thought of as a nation established in 1128 so that it might one day produce Cristiano Ronaldo, would have its draw. More important, the 2018 World Cup had its spark. The afterglow of a game like this can last for a couple of weeks, at least; on this stage, it can resonate around the world.
Spain would have been forgiven for feeling like a victim. It had been the better team in this game, had more of the ball, created more opportunities, played the slicker, smoother soccer.
It had looked every inch a contender for a World Cup title and nothing like a side still reeling from Lopetegui"s departure, shaken to its core by a dispute between its players and their ultimate bosses at the country"s federation, having to adjust to life under a new coach who, until now, had only managed one second-division team.
That Spain"s players did not let all this deter them on Friday only served to emphasize the scale of Ronaldo"s performance and the overall quality of the match.
And when the final whistle blew, the stadium stood: not just the clusters of Portuguese fans, not just the neutrals and the Russians, but the Spanish fans, too, in those blood-red jerseys. They applauded their own team, of course; there was enough encouragement there to see the bigger picture, to believe that the tumult of the last few days may not be fatal to their hopes.
But when Spain"s players had left the field, and Portugal"s stood in the center circle, the Spanish fans remained standing, and they kept clapping, as every single Portuguese player sought out Ronaldo, to clasp his hand, to ruffle his hair, as though just to touch him was to brush against something holy.
They do not mind that he attracts - demands, really - all of the attention. They do not mind being in the supporting cast, just as those Spanish fans did not mind providing the audience for the three acts of his one-man show. Sometimes, it is a pleasure simply to be there; sometimes, it is a pleasure just to sit back and watch. And at the end, sometimes there is nothing to do but applaud. 

16 DE JUNHO DE 201810:54
Rory Smith,
 New York Times

“When Ronaldo dies be should donate his brain to the FIFA museum, because his mental strength is entirely beyond comprehension.” 

[in The Guardian]


" Quando Ronaldo morrer deve doar seu cérebro para o museu da FIFA, porque sua força mental está totalmente além da compreensão."


                                        Lola