domingo, 13 de novembro de 2016

Leonard Cohen





 Leonard Cohen


A notícia, ainda que expectável, chegou como um relâmpago em dia de céu claro: às primeiras horas da madrugada de hoje morria Leonard Cohen. Lendário e imenso poeta, escritor das mais profundas e enigmáticas Canções dos séculos XX e XXI, aquele que via a lonjura enquanto todos tropeçamos em horizontes, Cohen, nascido em Montreal, Canadá, em 1934, tinha acabado de lançar um último e soberbo disco: 'You Want It Darker'. 

Vividas, mais do que inspiradas, as suas poesias são um embaraço para a morte que nunca lhes virá. 

Dialogou com Deuses e namorou religiões na mesma busca de absoluto com que experimentou os seus antípodas, enfrentou fantasmas e foi iludido pela pequenez dos homens, pelo meio libertou-se pela escrita, uma forma de nos salvar a nós também, salvando-se a si próprio do fim irreversível. 

Na canção que dá nome a este último disco ouvimo-lo tranquilo dizer:
'A million candles burning for the help that never came
You want it darker, 
Hinani, Hinani, 
I'm ready my Lord'.
E nesta prece, que ouviremos até que nós próprios evoquemos ajuda que não virá, se declarava pronto. E eu acredito que estivesse, tal é clara a tristeza e a certeza com que o faz, pressentindo o desfecho perante o qual hoje veio a soçobrar. Que algum dos Deuses, a quem ao longo da vida cantou e engrandeceu, o acolha e lhe saiba dar o lugar digno que, pela Obra e Vida, merece. 
Vi-te três vezes em espectáculos que me marcaram mais do que qualquer livro, viagem ou romance. Sempre deles saí elevado e transformado como se nos tivesses bafejado a todos com o encanto de vislumbrar contigo o Céu. 
Mudaste-me pela genuína Bondade com que transbordavas do palco. 
Devo-te, também por isso, muito mais do que poderei jamais dizer pelas minhas banais palavras. 
I was not ready Master! Thank you, bless you.

Pedro Abrunhosa
Porto, 11.10.16





Lola

Leonard Cohen



LEONARD COHEN

COMO DIZER POESIA

Tomemos a palavra borboleta. Para usar esta palavra não é preciso fazer com que a voz pese menos de um grama nem dotá-la de asinhas poeirentas. Não é preciso inventar um dia de sol nem um campo de narcisos. Não é preciso estar-se apaixonado, nem estar-se apaixonado por borboletas. A palavra borboleta não é uma borboleta real. Existe a palavra e existe a borboleta. Se confundires estas duas coisas darás razão a quem queira rir-se de ti. Não atribuas grande importância à palavra. Estarás a tentar insinuar que amas as borboletas de uma forma mais perfeita do que qualquer outra pessoa, ou que compreendes a sua natureza? A palavra borboleta não passa de informação. Não é uma oportunidade para pairares, levitares, aliares-te às flores, simbolizares a beleza e a fragilidade, nem de modo nenhum personificares uma borboleta. Não representes palavras. Nunca representes palavras. Nunca tentes tirar os pés do chão ao falares de voar. Nunca feches os olhos, tombando a cabeça para um dos lados, ao falares da morte. Não fixes em mim os teus olhos ardentes ao falares de amor. Se quiseres impressionar-me ao falares de amor mete a mão no bolso ou por baixo do vestido e toca-te. Se a ambição e a sede de aplausos te levaram a falar de amor deverás aprender a fazê-lo sem te envergonhares a ti mesmo nem às tuas fontes.

Qual é a expressão exigida pela nossa época? A época não exige expressão nenhuma. Já vimos fotografias de mães asiáticas enlutadas. Não estamos interessados na agonia dos teus órgãos remexidos. Não há nada que possas estampar no teu rosto que se equipare ao horror desta época. Nem sequer tentes. Apenas te sujeitarás ao desdém daqueles que sentiram profundamente as coisas. Já assistimos a películas de seres humanos em pontos extremos de dor e desenraizamento. Toda a gente sabe que andas a comer bem e que estás até a ser pago para estares aí em cima. Estás a actuar diante de pessoas que passaram por uma catástrofe. Tal facto deverá tornar-te bastante discreto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Toda a gente sabe que estás a sofrer. Não poderás contar à plateia tudo o que sabes sobre o amor a cada verso de amor que disseres. Chega-te para o lado e as pessoas saberão o que tu sabes por já o saberes. Nada tens para lhes ensinar. Tu não és mais belo do que elas. Não és mais sábio. Não lhes grites. Não forces uma penetração a seco. É mau sexo. Se revelares o contorno dos teus genitais, então cumpre o que prometes. E lembra-te que as pessoas não desejam propriamente um acrobata na cama. De que é que nós precisamos? De estar perto do homem natural, de estar perto da mulher natural. Não finjas que és um cantor adorado com um público vasto e leal que tem vindo a acompanhar os altos e baixos da tua vida até ao momento presente. As bombas, os lança-chamas e essas merdas todas não destruíram apenas árvores e aldeias. Destruíram igualmente o palco. Achaste que a tua profissão escaparia à destruição geral? Já não há palco. Já não há ribalta. Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Fica a sós. Fica no teu canto. Não te insinues.

Trata-se de uma paisagem interior. É por dentro. É privado. Respeita a privacidade do texto. Estas obras foram escritas em silêncio. A coragem da actuação é dizê-las. A disciplina da actuação é não as violar. Deixa que o público sinta o teu amor pela privacidade ainda que não haja privacidade. Sejam boas putas. O poema não é um slogan. Não poderá publicitar-te. Não poderá promover a tua reputação de seres sensível. Tu não és um garanhão. Tu não és uma mulher fatal. Toda essa treta relacionada com os bandidos do amor. Vocês são estudantes da disciplina. Não representes as palavras. As palavras morrem se as representares, murcham, e a única coisa que sobrará será a tua ambição.

Diz as palavras com a exacta precisão com que verificas uma lista de roupa suja. Não te comovas com a blusa de renda. Não fiques de pau feito ao dizer cuecas. Não te arrepies todo só por causa da toalha. Os lençóis não deverão suscitar à volta dos olhos uma expressão sonhadora. Não é preciso chorar agarrado a um lenço. As meias não estão lá para te recordar viagens estranhas e longínquas. É só a tua roupa suja. São só as tuas peças de roupa. Não espreites através delas. Veste-as.

O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior. Se o declamares e deres cabo dele com nobres intenções, então não serás melhor do que os políticos que desprezas. Não passarás de uma pessoa a agitar uma bandeira e a realizar o apelo mais reles a uma espécie de patriotismo emocional. Pensa nas palavras como sendo ciência e não arte. Elas são um relatório. Tu estás a falar num encontro do Clube de Exploradores da National Geographic. As pessoas que tens à tua frente conhecem todos os riscos do montanhismo. Honram-te partindo desse princípio. Se lhes esfregares isso na cara, será um insulto à sua hospitalidade. Fala-lhes da altura da montanha, do equipamento que usaste, sê rigoroso em relação às superfícies e ao tempo que demoraste a escalá-la. Não manipules o público à caça de bocas abertas e suspiros. Se mereceres as bocas abertas e os suspiros, isso não se deverá à avaliação que fizeres do acontecimento, mas à que o público fizer. Resultará da estatística e não do tremer da tua voz nem das tuas mãos a cortar o ar. Resultará dos dados e da discreta organização da tua presença.

Evita os floreados. Não tenhas medo da fraqueza. Não tenhas vergonha do cansaço. O cansaço dá-te bom ar. O ar de quem seria capaz de nunca mais parar. Agora, entrega-te aos meus braços. Tu és a imagem da minha beleza.

LeonardCohen
(tradução de Vasco Gato)

*
HOW TO SPEAK POETRY
Take the word butterfly. To use this word it is not necessary to make the voice weigh less than an ounce or equip it with small dusty wings. It is not necessary to invent a sunny day or a field of daffodils. It is not necessary to be in love, or to be in love with butterflies. The word butterfly is not a real butterfly. There is the word and there is the butterfly. If you confuse these two items people have the right to laugh at you. Do not make so much of the word. Are you trying to suggest that you love butterflies more perfectly than anyone else, or really understand their nature? The word butterfly is merely data. It is not an opportunity for you to hover, soar, befriend flowers, symbolize beauty and frailty, or in any way impersonate a butterfly. Do not act out words. Never act out words. Never try to leave the floor when you talk about flying. Never close your eyes and jerk your head to one side when you talk about death. Do not fix your burning eyes on me when you speak about love. If you want to impress me when you speak about love put your hand in your pocket or under your dress and play with yourself. If ambition and the hunger for applause have driven you to speak about love you should learn how to do it without disgracing yourself or the material.
What is the expression which the age demands? The age demands no expression whatever. We have seen photographs of bereaved Asian mothers. We are not interested in the agony of your fumbled organs. There is nothing you can show on your face that can match the horror of this time. Do not even try. You will only hold yourself up to the scorn of those who have felt things deeply. We have seen newsreels of humans in the extremities of pain and dislocation. Everyone knows you are eating well and are even being paid to stand up there. You are playing to people who have experienced a catastrophe. This should make you very quiet. Speak the words, convey the data, step aside. Everyone knows you are in pain. You cannot tell the audience everything you know about love in every line of love you speak. Step aside and they will know what you know because you know it already. You have nothing to teach them. You are not more beautiful than they are. You are not wiser. Do not shout at them. Do not force a dry entry. That is bad sex. If you show the lines of your genitals, then deliver what you promise. And remember that people do not really want an acrobat in bed. What is our need? To be close to the natural man, to be close to the natural woman. Do not pretend that you are a beloved singer with a vast loyal audience which has followed the ups and downs of your life to this very moment. The bombs, flame-throwers, and all the shit have destroyed more than just the trees and villages. They have also destroyed the stage. Did you think that your profession would escape the general destruction? There is no more stage. There are no more footlights. You are among the people. Then be modest. Speak the words, convey the data, step aside. Be by yourself. Be in your own room. Do not put yourself on.
This is an interior landscape. It is inside. It is private. Respect the privacy of the material. These pieces were written in silence. The courage of the play is to speak them. The discipline of the play is not to violate them. Let the audience feel your love of privacy even though there is no privacy. Be good whores. The poem is not a slogan. It cannot advertise you. It cannot promote your reputation for sensitivity. You are not a stud. You are not a killer lady. All this junk about the gangsters of love. You are students of discipline. Do not act out the words. The words die when you act them out, they wither, and we are left with nothing but your ambition.
Speak the words with the exact precision with which you would check out a laundry list. Do not become emotional about the lace blouse. Do not get a hard-on when you say panties. Do not get all shivery just because of the towel. The sheets should not provoke a dreamy expression about the eyes. There is no need to weep into the handkerchief. The socks are not there to remind you of strange and distant voyages. It is just your laundry. It is just your clothes. Don't peep through them. Just wear them.
The poem is nothing but information. It is the Constitution of the inner country. If you declaim it and blow it up with noble intentions then you are no better than the politicians whom you despise. You are just someone waving a flag and making the cheapest kind of appeal to a kind of emotional patriotism. Think of the words as science, not as art. They are a report. You are speaking before a meeting of the Explorers' Club of the National Geographic Society. These people know all the risks of mountain climbing. They honour you by taking this for granted. If you rub their faces in it that is an insult to their hospitality. Tell them about the height of the mountain, the equipment you used, be specific about the surfaces and the time it took to scale it. Do not work the audience for gasps and sighs. If you are worthy of gasps and sighs it will not be from your appreciation of the event but from theirs. It will be in the statistics and not the trembling of the voice or the cutting of the air with your hands. It will be in the data and the quiet organization of your presence.
Avoid the flourish. Do not be afraid to be weak. Do not be ashamed to be tired. You look good when you're tired. You look like you could go on forever. Now come into my arms. You are the image of my beauty.
by Leonard Cohen


Por Pedro Lamares:








                                               Lola

sábado, 5 de novembro de 2016

O Mar




O Mar


Mandaram fechar a marginal. A estrada cobriu-se de areia que sobrava no ar da rebentação. O ruído ensurdecedor parecia um modo de resmungar. O protesto enraivecido como se o mar tivesse razões para odiar a terra. Como se tivesse razões para nos odiar.
Quando era miúdo, uma das graças de ir à escola era passar pelo antigo farol que fica agora ali escondido entre os prédios. Os mais velhos, na altura, ainda se lembravam de aquilo ficar à vista dos barcos. Lembravam-se de as Caxinas serem apenas dunas e de aquele farol funcionar, porque a água vinha bem mais acima. Comentávamos divertidos o incrível que era termos mais de trezentos metros de casas depois do farol. As casas mais à vista dos barcos do que aquela construção escondida. Como se as pessoas estivessem de peito cheio contra a rebentação. Como se quisessem elas ser a resistência toda da terra contra a água. Havia sempre quem dizia que deus, diabo, o planeta ou os americanos, iriam arranjar modo de voltar a reclamar as dunas.
Falou-se disso por estes dias. Os pescadores comentavam que viria um tsunami para pôr tudo como era antigamente. Uma senhora repetia para si mesma que não tinha culpa de nada. Gostava de lhe ter perguntado porque se afligia com a culpa. Mas ela chorava, enrolada nos xailes, e olhava para diante igual a ver alguém que a acusasse. Os pescadores disseram-me que sempre souberam que isto aconteceria. As Caxinas, afirmavam, como lugar feito para desaparecer.
Fui até ao pé da Igreja de Nosso Senhor dos Navegantes que, em forma de barco, parecia capaz de partir, capaz de naufragar. Juntou-se por ali uma quantidade de gente. Algumas mulheres a obrigar os miúdos a voltarem para casa, que queriam ver. A marginal, bem mais alta, e o pequeno muro de pedra conferiam alguma segurança. As mulheres nem explicavam. Levavam os putos aos safanões, porque o respeito tinha de ser maior do que a curiosidade. Depois, a senhora da culpa aproxima-se novamente. Percorrera o mesmo percurso que fizera eu e assomava à igreja para perguntar se ali não estavam a rolar os pedregulhos que escoram a marginal. Disse-lhe que não. Ela respondeu que estávamos a pagar por tudo.
A senhora achava que íamos pagar a gula e o adultério, o orgulho e a preguiça, a avareza, a má criação, a falta de higiene e a pouca cultura. Achava que pagaríamos tudo de uma vez, como deitados ao lixo por não termos dignidade que se aproveite. Procurei fazer com que se acalmasse. Um homem gritou que fugíssemos. O mar vinha aí. Corremos rua acima a ver se nos protegíamos. Algumas pessoas molharam-se. Era a nuvem de água que se dissipava pelo vento. Fomos outra vez ao muro. Via-se o mar logo ali.








Prometi a um senhor escrever sobre aquilo. Pediu-me que não dissesse que tinham medo, porque não era medo, era só uma tristeza que deus, o diabo, o planeta ou os americanos estivessem a ameaçar reclamar as Caxinas de volta. Você não escreva que temos medo, porque isso não é verdade, insistia ele. A gente já viu de tudo, e também já perdemos de tudo, se formos com a água vai ser porque é a nossa vez. Como se morrer na nossa vez não fosse nada mais do que a justiça. A justiça não devia causar medo.
Subi as ruas ainda com algumas crianças enxotadas para casa. Comentavam o mesmo que eu nas suas idades. Que estava um farol entre os prédios lá para cima, à beira das escolas. Queriam saber, no fundo, como se podiam ter construído casas entre um farol e o mar. Uma das senhoras que levava o seu filho, sem abrandar nem pensar muito, prometeu ao filho que, se ele voltasse a dizer que íamos morrer, levava no focinho. 
VALTER HUGO MÃE
Publico, 12 de Janeiro de 2014


                                              Lola