domingo, 28 de outubro de 2018

Pontos de Interrogação



Pontos de Interrogação


Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?
Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?
Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?
Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?
Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?
(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)

MÁRIO CASTRIM, 
in OS DIAS DO AMOR (Ministério dos Livros, 2009)



                                            Lola

QUANDO EU TIVER SETENTA ANOS




QUANDO EU TIVER SETENTA ANOS 

Quando eu tiver setenta anos 
então vai acabar esta adolescência



vou largar da vida louca 
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer 
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja 
aproveitar as oportunidades 
de virar um pilar da sociedade 
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência 
quando acabar esta adolescência
.
Paulo Leminski, 
in de Caprichos e Relaxos

                                            Lola

Amélia dos Olhos Doces


.

AMÉLIA DOS OLHOS DOCES

.
Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança.
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.
.
Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.
.
Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!
.
Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.
.
Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?
.
Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama



JOAQUIM PESSOA (poema),
 CARLOS MENDES (composição e voz)



                                           Lola

Brasil, esse não!


Brasil, esse não!

“Amanhã, Deus vai provar que se fartou de ser brasileiro e vai dar ao Brasil o pior Presidente da sua história: Jair Bolsonaro. Vai dar-lhe um Presidente que pela sua boçalidade, pela sua arrogante ignorância e desprezo pela cultura e pelos simples valores daquilo a que chamamos sociedades civilizadas, pelo seu apelo ao ódio e à violência, pela sua indisfarçada vontade de perseguir os mais fracos e pobres dos brasileiros, de discriminá-los pela cor, pelo sexo, pela raça e pela classe social, deveria encher de vergonha aqueles que, de entre os seus votantes, são os mais bafejados pela fortuna e pela educação — e que são precisamente, dizem as sondagens, os que mais entusiasticamente se preparam para levar ao Planalto um fascista declarado. Todos os que amam deveras o Brasil jamais lhes poderão perdoar. Tudo, menos o Brasil de Bolsonaro.
Desses, já ouvi toda a espécie de autojustificações — primeiro, dadas de mansinho, envergonhadamente, tentando convencer que quem olha de fora não sabe o que se passa lá dentro; depois, já de forma clara e sem vergonha alguma, mesmo com orgulho — um orgulho que nem é abalado por se juntarem à massa ignara dos 70% de brasileiros que recolhem toda a sua informação no WhatsApp e no Facebook, que passam o dia a receber informações que sabem ser falsas e divulgá-las adiante, e a quem também nada incomoda que o seu valente candidato se acobarde sob uma falsa convalescença para fugir ao debate e ao confronto com o seu adversário. Aliás, nem lhes interessa saber o que ele pensa sobre o que quer que seja, basta-lhes saber que é contra o PT e que, se preciso for, os vai prender, torturar ou matar, conforme ameaça — não se sabe ainda se apenas como desejo ou mesmo para valer. Porém, se tudo se resumia a votar contra o PT, podiam ter escolhido Alckim, à direita, ou Ciro Gomes, no centro-esquerda. Mas preferiram a extrema-direita fascista e, com eles, arrastaram o Brasil. Não, não têm desculpa alguma. Mesmo que seja uma verdade penosa constatar que o próprio PT deu uma contribuição decisiva para o descrédito das instituições democráticas brasileiras e que, face à emergência de uma real ameaça fascista e sabendo da rejeição que o partido tinha junto de uma larga maioria de eleitores, não foi capaz do gesto patriótico de renunciar a uma candidatura presidencial e apagar-se perante quem pudesse travar Bolsonaro. Mas daí a apoiá-lo vai uma imensa diferença, que cobrirá para sempre de vergonha quem o fez. O Brasil de Bolsonaro não.
Meus íntimos irmãos brasileiros: eu não quero dar lições algumas a ninguém e por favor não me confundam com um Boaventura Sousa Santos. O país é vosso, o voto é vosso e até são livres de eleger quem o vá destruir de alto a baixo, da Amazónia até ao Rio Grande do Sul. Podem, com o vosso voto de amanhã, ajudar a restabelecer a ditadura, por golpada parlamentar e emenda constitucional ou por quartelada concertada com o capitão Bolsonaro. Podem convencer o povo de que a corrupção, a miséria, as desigualdades sociais, o crime e a violência são tudo obra exclusiva do PT ou culpa da democracia e não responsabilidades antigas e próprias — como se demonstra, por comparação, olhando para a história das democracias e das ditaduras. Podem, sinceramente (embora incompreensivelmente, para mim) acreditar que, sacrificando a democracia, resolvem todos os problemas endémicos do Brasil. Podem tudo isso, mas não podem impedir que quem cresceu a amar o Brasil da liberdade seja incapaz de continuar a amar o Brasil fascista. O Brasil de Bolsonaro será vosso, porque assim o quiseram; de quem, de fora, ama o Brasil, não.
Talvez a esses brasileiros lhes pareça coisa pouca o que o mundo de fora possa pensar deles, depois de amanhã: é mais um país que cai nas garras do populismo e da extrema-direita e também os vamos tendo na Europa, apesar da União Europeia e de tantas décadas de paz, de prosperidade e de respeito pelos direitos humanos e das minorias. É mais um país que vê manipulado nas redes sociais o que deveria ser o voto informado dos cidadãos, esse cancro que corrói por dentro as nossas democracias e que me garantem ser inútil de combater, pois que os tempos são outros, o mundo mudou e quem o não entende fica para trás. Somos então Velhos do Restelo a assistir, sem argumentos nem defesa, ao triunfo dos Salvinis, dos Victor Orbáns, dos Bolsonaros. Talvez, portanto, lhes pareça coisa pouca a polícia que atira para matar sem questionar, que tortura antes de perguntar, que faz desaparecer sem inquérito, um Brasil que prende, que exila, que censura a música, a imprensa, a literatura, a política, o pensamento. Sim, eu conheço todas as tropelias que o PT levou a cabo, segui de perto o ‘Mensalão’ e a ‘Lava Jato’, vi vários deles cederem à corrupção, ao tráfico de influências, ao luxo e ao deslumbramento com o dinheiro — como antes e depois do PT vi acontecer com todos ou quase todos os que se sentam no Congresso e que agora vão tratar de negociar com Bolsonaro, como antes negociaram com Sarney, com Collor, depois com Lula e depois com Temer, e vendendo os seus votos como sempre. Mas era preciso eleger como Presidente quem cometeu a infâmia de votar na golpada parlamentar do impeachment de Dilma homenageando o seu torturador? Não, o Brasil deste homem não.
Infelizmente, não vai haver milagre que impeça a vergonha à 25ª hora. Porque, mesmo que Deus existisse, e fosse ele infinitamente justo como dizem, só poderia e deveria estar já farto do Brasil. Deu-lhe sete vidas e todas os brasileiros deitaram fora. Deu-lhes um país de sonho, abundante em riquezas como poucos outros no mundo, e eles vivem ainda a queixar-se do ouro que D. João V lhes roubou, o célebre “quinto real” — que seria um quinto de todo o ouro extraído, tivesse esse quinto alguma vez chegado ao Reino, o que nunca aconteceu, nem de perto nem de longe. Deus é bem mais preciso noutras paragens, onde nem a miséria, nem a corrupção nem as ditaduras são escolhidas por voto ou conivência popular e por demissão das elites ao longo de gerações. Aliás, Deus, no Brasil, foi usurpado e é agora representado pelas Igrejas Evangélicas, cujos bispos viajam de jacto privado, vivem no luxo e na abundância, são donos de rádios e televisões e cobram metade efectiva do quinto real aos seus fiéis, com uma ferocidade e eficácia de que nenhuma repartição de Finanças é capaz. Com a sua leitura particular do Evangelho, concluíram que o reino de Deus é, sim, deste mundo e ocupam já um quarto dos lugares do Congresso, tendo proclamado o seu apoio ao capitão Jair Bolsonaro, “enviado do Senhor” para combater o “anti-Cristo”.
Deus foi-se embora dali: deixou ao Brasil os braços abertos do Cristo do Corcovado protegendo o nosso Rio de Janeiro antes que um aventureiro lhe lance mão, os seus apóstolos do Aleijadinho em Congonhas, as igrejas de Olinda, ou a catedral flutuante mágica de Brasília, obra do ateu Niemeyer, o único templo católico do mundo onde Deus não esmaga os fiéis, antes lhes dá asas para voarem ao seu encontro. Esse Brasil sim. Mas o Brasil deste proclamado ungido de Deus não.
Assim, abençoado pelas Igrejas dos novos crentes e tementes, propulsionado pelas redes sociais que são a democracia dos novos tempos, pelas mentiras compradas em pacotes no WhatsApp que são o novo jornalismo, empurrado pelos empresários que se esqueceram de prender e pelos políticos que esperam amnistia, pelos juízes-justiceiros que se darão por saciados, pelos militares que se darão por bem lembrados, pelos letrados que se imaginam revolucionários atrás de um capitão que não tem pudor de mostrar o que não sabe e não pensa, pelos que têm fome e sede de justiça e imaginam que irão ser saciados, pelos que têm fome e que julgam que se irão ocupar deles, pelos que têm medo e a quem prometem um revólver contra os bandidos, pela grandiosidade de um Fernando Henrique Cardoso que prefere morrer enferrujado na porta que se vai fechar, 210 milhões de brasileiros vão amanhã à noite mergulhar numa escuridão de onde ninguém sabe quando será o regresso e a que preço.
Para a História ficará o registo de um povo que se suicidou por sua livre vontade. E não haverá história mais triste do que esta para contar. Boa noite, Brasil.”

Miguel Sousa Tavares
27 de Outubro de 2018
Expresso
 Lola

Apesar de Você


Apesar de Você


Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu

Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar

Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro

Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
Lá lá lá lá laiá

                                                                       Chico Buarque



Chico Buarque escreveu e compôs “Apesar de você” em 1970. Nessa época, o Brasil vivia sob o jugo de uma ditadura militar, que tinha arredado qualquer noção de liberdade, igualdade e justiça da vida do País.

Chico foi, mais que tudo, corajoso. Mais que tudo, porque também foi inteligente. Com “Apesar de você” conseguiu um três em um: - Expôs a sua revolta, ludibriou (ainda que temporariamente) a censura vigente e transmitiu esperança. Muita.

A canção tornou-se uma mania nacional e foi cantada por muitos como se tratasse de um hino nacional.
Quando a censura Brasileira finalmente percebeu o sentido que Chico quis atribuir a “Apesar de você”, levou-o para interrogatório. Inquiriram-no sobre quem era o “você” da letra da canção, e a resposta foi: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”.
Portanto, o ódio, o medo, o crime, a xenofobia, a homofobia, o sectarismo, a violência, a tortura, a ignorância, o profissional da política, o saldo da conta, a corrupção que não acaba com ninguém, só connosco, os golpes, a estupidez, a imbecilidade, a malvadez, o jogo sem fim, por muito mau e diverso que “você” seja … temos mesmo que o questionar…:”Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?”
E, para nós primeiro, afirmar: ”apesar de você, amanhã há-de ser outro dia!” 



                                            Lola

sábado, 13 de outubro de 2018

Nós, homens


Nós, homens...

"Nós, homens, nunca saberemos o que é uma vida a nascer dentro do nosso corpo, numa intimidade absoluta. De certo modo tento compensar isso com o que escrevo. Vou parindo livros, mas os livros não me abraçam da mesma maneira."
António Lobo Antunes


                                            Lola

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O Novo



O Novo

«O inesperado surpreende-nos, porque nos instalamos com demasiada segurança nas nossas teorias e nas nossas ideias e estas não têm nenhuma estrutura para acolher o novo. Ora o novo brota sem cessar». 

Edgar Morin, 1999


Lola

Quanto é doce




QUANTO É DOCE
.
Quanto é doce quanto é bom
No mundo encontrar alguém
Que nos junte contra o peito
E a quem nós chamemos mãe
.
Vai-se a tristeza o desgosto
Põe-se a um ponto na tormenta
Quando a mãe nos dá um beijo
Quando a mãe nos acalenta
.
E embora seja ladrão
Aquele que tenha mãe
Lá tem no meio da luta
Ternos afagos de alguém

José Afonso


                                            Lola

Para escrever o poema





PARA ESCREVER O POEMA


O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.
Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.


NUNO JÚDICE, 
in A MATÉRIA DO POEMA
 (Publ. D. Quixote, 2008)


                                            Lola

Mundo dos pássaros






Mundo dos pássaros



"No mundo dos pássaros, quando é chegada a hora de voar, 

eles não se preocupam se seu voo será belo ou amplo! 

Apenas sentem que é hora. Aprumam-se, batem as asas, enfrentam o medo, lançam-se ao espaço e simplesmente voam. 

Miremo-nos no exemplo dos pássaros que não se comparam aos outros e nem se vangloriam de suas asas pois, sabem que no céu há lugar tanto para águias como para pardais!"




                                            Lola