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Foto by André Teixeira |
Van Gogh
Uma campanha para preservar a última morada dos irmãos Van Gogh
O município de Auvers-Sur-Oise e o
Instituto Van Gogh querem angariar 1,2 milhões de euros para restaurar as
lápides de Vincent e Theo Van Gogh e a igreja contígua, que acusam a passagem
do tempo e a grande afluência ao cemitério.
“O sol estava terrivelmente quente. Chegámos ao cemitério, um novo e
pequeno cemitério palmilhado por lápides novas. Ficava na pequena colina para
lá dos campos maduros para a colheita sob o vasto céu azul que ele ainda teria
amado… talvez”, escreveu o pintor Émile Bernard numa carta ao crítico de arte
Albert Aurier, datada de 2 de Agosto de 1890, onde relata o funeral de Vincent
Van Gogh. O pintor, que se terá suicidado com um tiro no peito a 27 de Julho
desse ano, não resistindo à infecção causada pela bala e morrendo dois dias
depois, passou os últimos 70 dias da sua curta vida em Auvers-sur-Oise, uma
vila a cerca de 30 quilómetros de Paris.
Aquela que foi a sua última morada necessita agora de uma intervenção
urgente devido à degradação desencadeada pelas chuvas intensas de Outubro de
2015. O município de Auvers-sur-Oise e o Instituto Van Gogh, responsável pela
conservação dos lugares que inspiraram o artista, estão a trabalhar para
angariar 1,2 milhões de euros com o objectivo de restaurar o cemitério onde
estão sepultados Vincent Van Gogh e o irmão,
Theo, e a igreja de Notre Dame de L’Assomption, a ele adjacente.
As inundações são frequentes no cemitério e a igreja do século XIII,
retratada por Van Gogh em A
Igreja em Auvers-sur-Oise – obra que se encontra no Museu
d’Orsay, em Paris –, está em risco de ruir, uma vez que o telhado
foi danificado pela tempestade e deixa vazar a água. Também a excessiva
afluência tem deixado mossa no solo onde jazem os restos mortais do pintor: o
cemitério foi construído para receber entre cinco e dez mil pessoas por ano e é
visitado por uma média de 250 mil. “É o cemitério mais visitado de França, a
seguir ao Père Lachaise [em Paris]”, aponta Dominique Charles Janssens, citado
pelo The Art Newspaper. O presidente do Instituto Van Gogh
assinala que, apesar da deterioração das condições, “as pessoas continuam a vir
e a pôr os pés na água”.
No ano passado, o estado francês e a administração local comprometeram-se a
financiar 60% dos 600 mil euros necessários para reparar o telhado da igreja. O
município vai contribuir com 20% do total, mas lançou uma campanha de crowdfunding em Junho
de 2016 para assegurar os restantes 120 mil euros. Sete meses depois, foram
angariados 57 mil euros, um valor que ainda continua distante da meta final,
apesar das doações dos descendentes da família, de alguns museus e dos
cidadãos. A primeira fase dos trabalhos terá início em Maio ou Junho na ala
Norte da igreja, onde os estragos foram maiores, de acordo com o jornal francês Le Parisien.
Muitos dos visitantes que passam no cemitério de Auvers-sur-Oise para
prestar homenagem a Van Gogh deixam girassóis ou
espigas de trigo dos campos circundantes na sua lápide, em alusão às paisagens
que pintou. Por ocasião do aniversário da sua morte, em Julho do ano passado, o Le Figaro reportou que o Instituto Van Gogh estava a pedir que, em vez de flores, o
público oferecesse doações para ajudar a preservar aquele sítio.
Além de contribuições para o restauro total da igreja, são necessários 600
mil euros para instalar um sistema de drenagem adequado no cemitério, assim
como novos sistemas de iluminação e de segurança. A organização pretende,
ainda, reabilitar os terrenos à volta da igreja – que serve actualmente de parque
de estacionamento – para corresponder à descrição que o pintor fazia do lugar
numa carta à irmã Willemina, retratando-o como “um delicado espaço verde e florido”.
Deverão ser, ainda, construídas casas de banho, uma cobertura que sirva de
abrigo aos visitantes e uma entrada com cadeado. Actualmente, a campanha
contabiliza 100 mil euros, mas segundo Dominique Janssens o objectivo é chegar
aos 600 mil até ao final de Julho.
Inseparáveis na vida e
na morte
A vida de Vincent Van Gogh foi uma incessante batalha contra a doença
mental, que lhe causava alucinações, falhas de memória e oscilações de humor. O seu estado de saúde piorou a
partir do momento em que cortou a orelha esquerda com uma lâmina, em Dezembro
de 1888. Após o tratamento de que se encarregou o médico Félix Rey
ainda em Arles e o internamento numa instituição psiquiátrica em
Saint-Remy-de-Provence, Van Gogh chegou a Auvers-en-Oise em Maio de 1890, para
estar mais perto do irmão, Theo, e para consultar o Paul Gauchet, médico que
lhe havia sido recomendado por Pissarro.
O curto período que passou naquela vila francesa foi o mais produtivo da
sua carreira; dele resultaram 75 pinturas e mais de cem desenhos e rascunhos.
Mas Van Gogh continuava acometido pelos ataques de perda de consciência que
viriam a ditar o seu suicídio nesse Verão. O funeral decorreu um dia após a sua
morte e contou com a presença não só de familiares e locais como de membros da
comunidade artística parisiense, incluindo os pintores Lucien Pissarro, Charles
Laval e Émile Bernard e o negociante de arte Julien Tanguy.
“Ele morreu na noite de segunda-feira, ainda a fumar o seu cachimbo que se
recusava a deixar, e explicou que o seu suicídio tinha sido completamente
deliberado”, conta Émile Bernard na carta a Albert
Aurier. O artista descreve ao amigo que a divisão onde o corpo do pintor estava
a ser velado se encontrava decorada com as suas últimas telas e que a urna
estava coberta com um pano branco e girassóis e dálias amarelas. “Era, como te
deves lembrar, a sua cor favorita, o símbolo da luz que ele sonhava ver no
coração das pessoas e também nas suas obras de arte."
O pintor relata, ainda, o pesar que tomou conta da cerimónia fúnebre.
Gachet, que havia tido esperança de salvar o seu paciente, emocionou-se de tal
forma que só conseguiu balbuciar uma despedida rápida. “Segundo Gachet, ele era
um homem honesto e um grande artista, que só tinha dois objectivos, a
humanidade e a arte.” Theo, seu irmão e companheiro de todas as horas, “esteve
a chorar desalmadamente o tempo todo”, e acreditou até ao fim que Vincent
resistiria. “Levou alguns momentos até que partisse e, então, encontrou a paz
que não tinha encontrado na Terra”, notou numa carta à mulher, Jo.
Theodore Van Gogh viria a morrer seis meses depois, aos 33 anos,
alegadamente de sífilis. Inicialmente, foi enterrado em Utrecht, na Holanda, a
cerca de 80 quilómetros de Zundert, onde os dois irmãos nasceram. Aí permaneceu
até 1914, data em que a família exumou o seu corpo para que pudesse ficar junto
do pintor no cemitério francês.
No final dos anos 1800, Auvers-sur-Oise era uma
comunidade de artistas. Vários pintores ali chegavam à procura dos
conselhos e da orientação de mestres como Paul Cézanne, que trabalhara na vila
durante dois anos, e Charles-François Daubigny, precursor do movimento
impressionista que ali viveu. Ainda hoje aquela localidade é um capítulo
imprescindível para a compreensão da vida e da obra de um dos grandes nomes da
história da arte. Há 29 placas espalhadas pelas ruas com imagens dos quadros
que Van Gogh pintou e dos edifícios ou paisagens que o inspiraram.
Durante o tempo que passou em Auvers-sur-Oise, Van
Gogh esteve hospedado no Auberge Ravoux, onde pagava 3,5 francos por
noite e partilhava quarto com o pintor holandês Anton Hirschig. A divisão,
assim como os restantes aposentos da pousada, pode ser visitada pelo público; o
bilhete inclui um documentário sobre a relação de Van Gogh com a vila, com o
irmão Theo e com o parceiro artístico Paul Gauguin. A vila orgulha-se ainda de
albergar o ateliê de Daubigny, a casa do Dr. Gachet (cuja visita é gratuita) e
o seu castelo. No fundo, Auvers-sur-Oise é um postal vivo que ilustra a memória
das plantações de trigo e do vibrante céu azul que se eternizaram no repertório
de Van Gogh.
in Publico
MARIA JOÃO MONTEIRO
5 de Fevereiro de 2017, 7:00
«É como se não deixássemos morrer os girassóis»
(Júlio Machado Vaz)
Lola