quinta-feira, 23 de abril de 2020

Este é o Prólogo





Este é o Prólogo

Deixaria neste livro
toda minha alma.
Este livro que viu
as paisagens comigo
e viveu horas santas.

Que compaixão dos livros
que nos enchem as mãos
de rosas e de estrelas
e lentamente passam!

Que tristeza tão funda
é mirar os retábulos
de dores e de penas
que um coração levanta!

Ver passar os espectros
de vidas que se apagam,
ver o homem despido
em Pégaso sem asas.

Ver a vida e a morte,
a síntese do mundo,
que em espaços profundos
se miram e se abraçam.

Um livro de poemas
é o outono morto:
os versos são as folhas
negras em terras brancas,

e a voz que os lê
é o sopro do vento
que lhes mete nos peitos
— entranháveis distâncias. —

O poeta é uma árvore
com frutos de tristeza
e com folhas murchadas
de chorar o que ama.

O poeta é o médium
da Natureza-mãe
que explica sua grandeza
por meio das palavras.

O poeta compreende
todo o incompreensível,
e as coisas que se odeiam,
ele, amigas as chama.

Sabe ele que as veredas
são todas impossíveis
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Nos livros seus de versos,
entre rosas de sangue,
vão passando as tristonhas
e eternas caravanas,

que fizeram ao poeta
quando chora nas tardes,
rodeado e cingido
por seus próprios fantasmas.

Poesia, amargura,
mel celeste que mana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

Poesia, o impossível
feito possível. Harpa
que tem em vez de cordas
chamas e corações.

Poesia é a vida
que cruzamos com ânsia,
esperando o que leva
nossa barca sem rumo.

Livros doces de versos
são os astros que passam
pelo silêncio mudo
para o reino do Nada,
escrevendo no céu
as estrofes de prata.

Oh! que penas tão fundas
e nunca aliviadas,
as vozes dolorosas
que os poetas cantam!

Deixaria neste livro
toda a minha alma..
.
.Frederico García Lorca,
in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes


                                                Lola

A um Livro


Cabaça & Arte


A um Livro


No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! ...

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! ... Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! ...



Florbela Espanca,
in "Livro de Mágoas"



Cabaça & Arte
                                                Lola

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Muito obrigada, Doutora!



Muito obrigada, Doutora!

Covid-19: Adriana despediu-se do pai pelo telefone de uma médica a quem quer dizer "obrigado"

Vinte dias separam a última visita que Adriana fez ao pai e aquele em que recebeu a notícia da sua morte. No funeral estiveram "talvez 10 pessoas".


Foto: MIGUEL A. LOPES/LUSA

Não se escolhem flores e a gestão de quem pode estar no último adeus é quase matemática. Adriana despediu-se do pai em tempo de pandemia por videoconferência graças a uma médica à qual, "quando tudo passar", quer dizer "obrigado".

Vinte dias separam a última visita que Adriana fez ao pai - Martinho Miranda Ribeiro, de 79 anos, reformado, apaixonado pela música e residente em Vila do Conde, no distrito do Porto, - e aquele em que recebeu a notícia da sua morte.
Conforta-a saber que Martinho sabia que era amado e que a perda foi "uma inevitabilidade" em tempos da pandemia da covid-19. Sossega-a saber que o pai "teve uma boa vida". Alivia-a saber que "fez tudo o que podia", conta à agência Lusa, menos de um mês depois de um funeral no qual estiveram "talvez 10 pessoas".
"O caixão chegou. Estávamos com máscara e afastados. Não escolhemos nada: nem caixão, nem flores, nada. Percebi que havia uma urgência das autoridades e da funerária em fazer o enterro. Enterrámos o meu pai e agora é isto. Viver com isto. O que me ajuda a fazer o luto é a própria personalidade do meu pai que dizia que quando morresse não queria luxos, nem preto, nem choros. Só queria música. Teve um funeral discreto como ele queria e como eu nunca imaginei que tivesse", descreve.
Martinho Miranda Ribeiro, que tocava concertina no Rancho das Caxinas e tinha 12 irmãos, tinha gerido um café e um restaurante depois de regressar a Portugal vindo do Brasil. Morreu a pouco tempo de completar o 50.ª aniversário de casamento que aconteceria em maio e planeava a "grande festa que ia fazer" há um ano.
"Para a minha mãe, que perdeu o companheiro de 50 anos, tem sido difícil. Porque não o viu, não sabe se ele foi bem tratado. Pergunta-se: será que morreu sozinho? Será que sofreu?", conta.
Estas são perguntas que o presidente da Delegação Regional Norte da Ordem dos Psicólogos (OPP-DRN), Eduardo Carqueja, conhece bem.
Em declarações à agência Lusa, o psicólogo explica que "o que está a acontecer [em tempos de pandemia] é que muitas famílias não conseguem despedir-se, não conseguem visualizar como é que o seu familiar morreu" e, por isso, "imaginam".
"E a imaginação carrega sofrimento, o sofrimento de pensar que pode não ter sido como gostariam que tivesse sido. Quem trabalha no luto tem de estruturar isto muito bem. É importante que não se abandone estas pessoas enlutadas no tempo que vai chegar porque elas podem não ficar prisioneiras da covid-19, mas ficam prisioneiras de sentimentos de culpabilidade, impotência, abandono, com raiva dirigida para quem morreu ou para quem tratou de quem morreu", descreve Eduardo Carqueja.
O presidente da OPP-DRN explica que "num processo de perda não há como não ter sofrimento" e que deve "desenganar-se quem acha que só com acompanhamento psicológico ou com fármacos deixa de sofrer".
Adriana Miranda Ribeiro, 41 anos, mãe de uma menina de quatro à qual foi diagnosticada leucemia há um ano, situação atualmente em remissão, sabia que o pai ia morrer um dia apesar de a certa altura ter achado que ele era "imortal".
"O meu pai foi internado em novembro depois de um enfarte. Teve consequências e aguardava reabilitação. Foi sempre resistindo. Teve várias infeções hospitalares, desde gripe A a uma no intestino (...). Foi operado. Trocaram-lhe parte do 'pacemaker'. Resistia sempre. Sempre otimista. Foi preciso vir uma pandemia para o levar", diz.
O Governo proibiu as visitas a hospitais a 08 de março. Adriana ainda viu o pai no dia seguinte. Internado por várias outras patologias, Martinho testou positivo ao novo coronavírus a 20 de março.
Foi transferido para o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, e morreu cerca de uma semana depois, e também depois de ter visto o filho mais novo, a quem, após estar "todo equipado", foi permitido visitar o pai de madrugada, e ainda depois de uma videochamada que o permitiu ver a filha e a mulher.
"Recebi uma chamada depois das 23h00 - ninguém liga a essa hora se for para dar esperança - de uma médica espetacular do Pedro Hispano. Chama-se Margarida Oliveira. Quando tudo isto passar vou procurá-la. Se calhar dá conforto a 100 pacientes e a 100 famílias por dia, mas eu quero agradecer-lhe. E combinámos uma videochamada pelo telefone dela. Não sei se ele nos ouviu, mas dissemos o que tínhamos a dizer. De alguma forma despedimo-nos", conta Adriana, que não se deslocou ao hospital por ser muito arriscado expor-se ao vírus tendo em conta o historial médico da filha.
A videochamada que a médica proporcionou a Adriana e à mãe é uma das estratégias que Eduardo Carqueja descreve como "vitais" num "momento como este em que a morte, o luto e a perda começam a ser falados com banalidade".
"É um desafio que já nos está a merecer a todos uma reflexão e um olhar diferente sobre a última proximidade. Quem trabalha nesta área procura que exista uma última proximidade para tranquilidade, de quem morre e de quem fica", descreve o psicólogo.
Eduardo Carqueja, que também dirige o serviço de psicologia do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), no Porto, acrescenta que também a "memória" é uma forma de "integrar a perda" e "fazer o luto".
Indo ao encontro desta estratégia, num tempo em que as despedidas são curtas e os rituais são reduzidos ao máximo, Adriana recorda um pai "muito popular" que "provavelmente teria tanta gente no funeral que até seria difícil de gerir", mas que morreu "porque o universo criou uma pandemia" que levou um "herói" ao qual só faltou "amassar um vírus que não lhe metia medo".
O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já provocou mais de 124 mil mortos e infetou quase dois milhões de pessoas em 193 países e territórios.

    Sábado, 15.04.2020 12:08 por Lusa


Muito Obrigada, Senhora doutora Margarida Oliveira por me ter dado a honra de ter sido sua professora de Filosofia. É sempre muito gratificante saber que contribuimos para a formação de seres de excelência como a doutora!


                                                Lola

segunda-feira, 6 de abril de 2020

VENTILADORES: O QUE SÃO?



VENTILADORES: O QUE SÃO?

Nas últimas semanas, todos começámos a ouvir falar de uns aparelhos especiais: os ventiladores.
Para mim, que sou anestesista, o ventilador é o aparelho mais marcante e simbólico da minha profissão. Aliás, é curioso que a minha própria foto de perfil tem um ventilador em miniatura, uma foto que eu coloquei antes de tudo isto acontecer. Ouvir falar agora a toda a hora de ventiladores é algo invulgar e que até me surpreende! Naturalmente, a maior parte das pessoas não sabe muito sobre ventiladores. Pensei então que seria interessante mostrar um pouco dessa pequena-grande máquina que agora entrou nas nossas conversas diárias.
Um ventilador é um aparelho que permite realizar ventilação mecânica, ou seja, permite realizar os movimentos respiratórios, a inspiração e a expiração, num doente que não consegue fazê-lo sozinho – seja porque está anestesiado, seja porque está incapacitado para o fazer em consequência de uma doença.
Claro que, durante um período limitado de tempo, um profissional de saúde treinado pode ventilar o doente manobrando um sistema simples, semelhante a um balão de borracha (a que no nosso dia a dia chamamos “ambu”). Decerto já viram isso acontecer, no cinema ou na vida real, quando se fazem “manobras de ressuscitação” em doentes que delas necessitam. Uma outra alternativa de ventilação ainda mais básica é a chamada “respiração boca-a-boca”. Mas tanto o “ambu” como o “boca-a-boca” são, como todos compreendem, atitudes de emergência que só são possíveis por muito pouco tempo. Quando um doente não respira eficazmente, vamos ter de o ”ligar” a um ventilador.
Embora já existam há várias dezenas de anos, foi a partir dos anos 80 que os ventiladores se tornaram verdadeiros computadores, permitindo programar e gerir com grande precisão uma enorme quantidade de detalhes respiratórios que têm de ser rigorosamente adequados a cada doente e a cada situação. Desses, os 2 detalhes mais fáceis de perceber são: o volume de ar que entra e sai dos pulmões em cada respiração, e a quantidade de respirações por minuto. Mas muitos outros detalhes, mais subtis mas igualmente importantes, têm que ser programados, avaliados e ajustados permanentemente.
Os ventiladores são diariamente utilizados nos Blocos Operatórios por muitos milhares de anestesistas em todo o mundo (somos cerca de 1700 em Portugal), mas também são utilizados nas Unidades de Cuidados Intensivos, que é o assunto que agora nos preocupa a todos. Nessas Unidades trabalham médicos com a especialidade de Medicina Intensiva, especificamente vocacionados e treinados para essa área, mas também médicos de outras especialidades, principalmente de Anestesiologia e de Medicina Interna, que também decidiram dedicar-se à Medicina Intensiva.
E porque estamos então agora sempre a falar de ventiladores? Porque várias situações clínicas e doenças provocam aquilo que se chama uma “insuficiência respiratória”, a tal situação em que o doente é incapaz de respirar de forma suficientemente eficaz. Como se compreende facilmente, uma das situações em que isso pode acontecer são as pneumonias graves: debilitados pelo processo inflamatório, os pulmões não conseguem cumprir a sua função normal. No caso particular da COVID-19, relembremos o que já toda a gente sabe: a grande maioria das pessoas infectadas tem sintomas leves, ou mesmo nenhuns sintomas (assintomáticos), mas uma minoria desenvolve uma pneumonia que frequentemente é grave e exige o uso de um ventilador.
Em Portugal, como aliás em todos os países do mundo, existe uma certa reserva de camas de Cuidados Intensivos (cada uma delas equipada com o respectivo ventilador), o que ao longo dos anos tem permitido fazer face às necessidades que vão surgindo, com maior ou menor dificuldade. Mas esta pandemia foi tão inesperada e avassaladora que o enorme número de doentes com necessidade simultânea de ventilação tem ultrapassado, nuns países mais do que noutros, todas as reservas e previsões.
É por isso que se ouve falar tanto na necessidade de obtermos mais ventiladores. E nas últimas semanas tem havido um enorme esforço nesse sentido: os nossos hospitais praticamente deixaram de fazer cirurgias, de forma a libertarem os ventiladores usados em anestesia para criar novas camas de Cuidados Intensivos; foram feitas encomendas de novos ventiladores – com as naturais dificuldades que decorrem da enorme procura em todo o mundo; várias empresas locais prontificaram-se a fabricar ventiladores novos (o que não é fácil, pois trata-se de máquinas sofisticadas em que não pode haver falhas). Mas é muito importante realçar o seguinte: por muitos ventiladores e novas camas de Cuidados Intensivos que se consiga disponibilizar, nada disso funciona por si só: as máquinas não funcionam sozinhas.
Ainda por cima, gerir as situações clínicas de insuficiência respiratória é tudo menos fácil: implica saber, tempo, paciência, cuidados especializados, dedicação, etc. Só profissionais de saúde experientes e com treino adequado conseguem os melhores resultados. O factor chave é portanto, mais ainda do que os ventiladores, a existência de profissionais de saúde, nomeadamente os que têm experiência nessa área. Refiro-me não só a médicos mas também aos enfermeiros, que são outra peça importantíssima e indispensável para o bom funcionamento dos Cuidados Intensivos, sem esquecer os outros profissionais, como os auxiliares de acção médica e os técnicos de saúde.
A pandemia já provocou vítimas entre nós, e certamente irá provocar bastantes mais. Mas vai havendo alguns sinais de esperança. Nos últimos dias, os números permitem alguma esperança – embora ninguém tenha ainda certezas. Mas creio que nesta crise tem havido um enorme esforço de todos. Os portugueses têm feito o melhor possível para cumprir a quarentena, em condições muitas vezes difíceis. O nosso sistema de saúde tem tentado reorganizar-se rapidamente para responder à pandemia, com as dificuldades naturais que decorrem de muitos anos de pouco investimento. Os profissionais de saúde estão na primeira linha, a dar o máximo, a dar o seu melhor. No fundo, todos estamos a tentar dar o nosso melhor. Essa é a nossa maior força, e a maior razão para a esperança. Juntos vamos conseguir!
1 de abril às 18:15


Porque em tempos de Pandemia (e não só....) a vida, que nos envolve é, muitas vezes, sinónimo de ventilador....


                                                Lola