«Devia ser
proibido casar com o primeiro namorado»
Andamos
stressados, resignados, desligados do amor, quando na verdade não há nada na
vida por que valha mais a pena lutar, avisa o psicólogo clínico Eduardo Sá. A
pensar em todos nós escreveu «Quem Nunca Morreu de Amor», lançado esta
quinta-feira em Lisboa. Os medos são muitos, sim. Mas a esperança no amor tem
de ser mais forte.
Entrevista de Ana Pago
O que é isto de se morrer de
amor?
É algo que já aconteceu a todas as pessoas que amam, e eu acho isso bonito.
Significa que vivem as relações com o coração desabotoado – coisa que não
acontece com toda a gente, e seguramente não todos os dias. Por outro lado, tem
implícita a noção de que precisamos intensamente de alguém que traga
contraditório à nossa vida para termos um sentido para crescer. Portanto, quando
alguém se separa de nós, mesmo que o faça em português suave dizendo «Vamos dar
um tempo», é claro que não ficamos só de coração partido. Morremos um
bocadinho.
E não é uma catástrofe, isso?
Antes pelo contrário! Dói loucamente, a ponto de por vezes pensarmos em morrer
no sentido mais literal da palavra. Mas depois vamos buscar vários sentidos
para recriar esse amor que perdemos e, a dado momento, damos connosco à procura
de outras pessoas que tragam sentido à nossa vida. Mesmo que o façamos dizendo
aquilo que toda a gente saudável diz: «Depois de um amor assim, nunca mais na
vida vou querer amar ninguém.»
«Costumo dizer que devia ser proibido casar com o primeiro
namorado, na esperança de que isso possa fazer lei.»
É possível viver-se uma vida
inteira sem termos morrido de amor pelo menos uma vez?
Eu desejaria que não. Acho absolutamente comovente amar alguém para sempre, mas
tem tanto de comovente como de difícil. Costumo dizer que devia ser proibido
casar com o primeiro namorado, na esperança de que isso possa fazer lei. E sim,
devia ser recomendável morrer as vezes indispensáveis por amor até encontrarmos
a pessoa que faça sentido à nossa vida. Sobretudo isso. É algo que nos torna
humildes.
Quer dizer então que existem
mesmo amores para toda a vida?
Sim, existem. Embora sejam raríssimos porque as pessoas, muitas vezes,
desmazelam as relações amorosas e aquilo transforma-se com alguma facilidade
numa relação fraterna, o que não é a mesma coisa. Em todo o caso, há ligações
absolutamente mágicas. Relações nas quais os casais, em vez de envelhecerem
para o amor, renascem permanentemente alimentados por ele.
Na maioria dos casos, somos muito apressados e muito preguiçosos. E é tão, tão
difícil encontrar a pessoa «certa» que partimos do pressuposto de que se ela
não nos cai no colo, no caminho de casa para o emprego, então é porque não
existe. Às vezes, quando interpelo as pessoas, elas reagem de forma um bocado
magoada e respondem: «Ah, agora quer que eu faça de Carochinha, não?» Claro que
não quero que ninguém vá para a janela perguntar a todos os estranhos se querem
casar com elas, por favor!
Sucede que, à medida que
crescemos, vamos desertificando as nossas relações…
A começar pelas relações de amizade, sim. Os grupos pelos quais circulamos
tornam-se menores, mais fechados a novas pessoas, e no meio de uma
desertificação tão grande é natural que nos cruzemos com menos gente que nos
obrigue a perguntar até que ponto a relação que eu tenho faz sentido, por
comparação com aquela outra pessoa. Acho que ainda falamos muito pouco do amor.
Falamos mais facilmente de sexualidade do que de amor. Na escola fala-se mais
da educação para a sexualidade do que para o amor.
Talvez por se pensar que já
estamos todos devidamente esclarecidos em relação ao amor?
Ou bem servidos, o que é mentira. O que vemos depois é que a esmagadora maioria
dos casais é tão infeliz nas suas relações amorosas, tão resignada diante dessa
infelicidade. E resignarmo-nos face à infelicidade é o contrário de se morrer
de amor. É isso que eu acho que as pessoas não percebem e tenho pena que assim seja.
«A versão que se dá aos adolescentes da educação para o amor
mais parece Educação Tecnológica parte dois.»
É fundamental educar para os
afetos?
Precisamos de falar do amor e, sobretudo nas escolas, é vital explicar que
nenhum amor dura para sempre se não for bem cuidado. Que mais importante do que
casar é namorar, porque quando namoramos já casamos um bocadinho. Que nas
relações amorosas nem todos acertamos à primeira, à segunda ou à terceira. A
versão que se dá aos adolescentes da educação para o amor mais parece Educação
Tecnológica ou Educação Moral e Religiosa parte dois. Isto, em vez daquilo que
é estrutural e nos une: como é que eu posso ter a certeza de que a pessoa por
quem estou perdidamente apaixonado gosta de mim?
Mas isso também porque o amor
não é tangível. Cada um sente-o de maneira diferente…
Mesmo assim, não se fala dele. É quase um interdito, um tabu. Portanto sim,
acho que a escola é um laboratório de liberdades tão mágico em tantos aspetos,
nomeadamente no de pôr as pessoas a conversar e a pensar, a escutarem-se umas
às outras, que se se pudesse trazer para dentro dela uma conversa séria sobre o
amor… meu Deus, seria incrível. E nós temos verdadeiramente alguns professores
do outro mundo, ao nível da confiança que os alunos depositam neles. Capazes de
nos fazerem amar a vida.
Como é que, em nome do amor,
há quem bata, maltrate e violente alguém que diz amar acima de tudo?
Não é amor, não pode ser. Só por aqui já justifica falar-se dele para se acabar
com um certo discurso obscurantista. O amor não é o encontro com uma alma
gémea, porque quando procuramos uma alma gémea estamos à procura de um reflexo
nosso, nunca do amor. Acontece com muita gente: tentam encontrar alguém que
idealizaram de todas as formas ao seu alcance sem que esse outro possa,
seguramente, trazer diferença e crescimento ao seu mundo. São essas pessoas que
não conseguem morrer por amor. A maldade é o que nos permite distinguir uma
relação amorosa de outra coisa a que, de forma delirante e doentia, chamamos
amor.
«Entre estarmos mal acompanhados ou sozinhos, preferimos a
companhia, mesmo que nos adormeça para a vida.»
Falava ainda agora de almas
gémeas: podem ser consideradas o expoente máximo do amor, em termos de ideal?
Ou esta é uma visão redutora por pressupor que não somos completos à partida?
E não somos. Precisamos sempre de outras pessoas nas nossas vidas como
contraditório para o exercício da justiça e para nos conhecermos. Quanto mais
os outros são diferentes de nós, mais temos os apelos e as interpelações que
nos obrigam a perceber quem somos. O poeta brasileiro Vinicius de Moraes dizia
que é impossível ser feliz sozinho e eu concordo. Muitas vezes, quando temos
essa ilusão ou consumimos aqueles slogans inquietantes que nos perguntam quem gostará
de nós se nós próprios não gostarmos, é como se disséssemos aos outros que são
adereços na nossa vida…
E não a porta indispensável
que nos abre para saber quem somos…
E para nos conhecermos mais e melhor, sem dúvida. No limite, conhecer é amar, e
vice-versa. Tenho pena que muitas vezes isso não seja dito de forma clara,
porque acho que nos perderíamos todos menos com as coisas supérfluas do
dia-a-dia. O que é mais bonito é que às vezes atravessam-se pessoas na nossa
vida que acreditam mais naquilo que somos do que nós mesmos. E quando
acreditam, levam-nos a tentar perceber em que ponto do caminho é que nos
desencontrámos de nós, e a querermos voltar a ser quem supúnhamos que éramos
mas, por qualquer motivo, deixámos de ser.
Também é por amor que tendemos
a insistir até à última em relações condenadas?
Não, muitas vezes é por vaidade: como vou assumir um falhanço? Ou por medo:
entre estar mal acompanhado ou sozinho, prefiro a companhia, mesmo que ela me
adormeça para a vida. É como se o outro nos fosse convertendo na sombra do que
somos e não no que somos, de facto – o contrário de termos alguém que se propõe
conhecer-nos. E isso é muito inquietante porque, de repente, vamos perdendo em
suaves prestações o respeito por nós. Acumulamos essa bruma e desistimos de
quem somos, das nossas convicções, até morrermos para a vida. O que, volto a
dizer, é diferente de morrer de amor.
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Eduardo Sá |
Quando começa um divórcio?
Quando não namoramos todos os dias. É facílimo divorciarmo-nos: basta termos
muitos compromissos profissionais, muitas preocupações a esse nível, até
filhos. Ao contrário do que eles e nós quereríamos, são os filhos quem melhor
divorcia os pais, porque depois passamos a vida a tapar a cabeça e a destapar
os pés, sempre a correr atrás do prejuízo. Temos a ideia de que existem
relações seguras, em relação às quais podemos descontrair, e sem dar conta
chegamos ao patamar em que falamos numa linguagem encriptada.
Nós ficamos sossegados, a
achar que dissemos o que estávamos a sentir…
… Mas nem paramos cinco minutos para perceber se o outro entendeu o que
queríamos dizer. Depois chega uma altura em que um amigo nos pergunta porque
não dissemos o que sentíamos e nós desabafamos: «Porque não estou para me
chatear.» Começamos a divorciar-nos quando já não estamos para nos chatear.
Quando chegamos à célebre frase que já todos dissemos e todos escutámos: «Não
lhe disse porque não vale a pena. Ele não ia perceber.»
«Brinco muitas vezes com o Dia dos Namorados: porque havemos
de ter só um dia no ano para namorar?»
Sendo assim, haverá muita
gente divorciada por dentro, mesmo que esteja casada por fora.
Por isso é que brinco muitas vezes com o Dia dos Namorados: porque havemos de
ter só um dia no ano para namorar? Por outro lado também é inquietante ver duas
pessoas, que tecnicamente são namorados, sentadas a uma mesa em que uma fala
com o bife e outra com as batatas fritas, com uma vela no meio, cada qual a
consultar o seu Facebook sem trocar palavra. Vivemos num mundo que quer ser
tecnicamente irrepreensível quando, no amor, devíamos ser apaixonadamente
repreensíveis. Porque isso acontece se temos alguém ao nosso lado que nos diz
que, por mais tolos que sejamos, ele não vai desistir de nós.
Sofre-se mais por amor quando
temos 15 anos e não sabemos nada da vida? Ou quando já passámos por tantos
embates que custa horrores a suportar mais um?
Esqueça, um amor maduro é incomparavelmente mais bonito – e mais difícil. Tenho
o maior respeito pelos adolescentes, o maior. Mas quanto mais velhos somos,
também maiores se tornam as probabilidades de encontrarmos a pessoa da nossa
vida ou, pelo contrário, de ficarmos sozinhos para sempre. Temos uma
sensibilidade tão mais educada, damos tanta importância a pequenos pormenores,
que depois não se chega lá com marketing e publicidade enganosa. Apenas com
transparência.
Em que é que o amor de mãe
difere de todos os outros amores?
É mágico. Imagine uma mulher no limite da exaustão, cheia de preocupações, com
uma atividade profissional que valha-nos Deus e uma família de origem em que a
mãe e a sogra disputam entre si para ver quem sabe mais de bebés, em vez de
darem colo à mãe – ninguém dá colo às mães. Se alguém soprar, aquela mãe escangalha-se.
E então o seu filho chora, sorri, aninha-se-lhe nos braços, e toda ela se
ilumina. É amor de mãe. Mas atenção: há amores maduros que podem ser muito
parecidos com isto, daí serem tão raros. E tão absolutamente arrepiantes quando
acontecem.
O romantismo está em vias de
extinção?
Não, nunca, embora eu tenha medo de que as pessoas o considerem jurássico. É
verdade que todos os amores são ridículos: dizemos coisas que em condições
normais não diríamos sob pena de nos julgarem loucos; fazemos patetices que são
uma ternura. Ser romântico é uma forma de sermos especialmente amáveis para
alguém, que nos abre para sermos amados e nos faz tocar a alma do outro.
Devíamos dizer aos adolescentes – a toda a gente, já agora – que não só não
está em vias de extinção como não é vergonha.
Temos medo de amar, todos nós?
Todos, todos, todos. Mas como poderemos crescer sem dor?
É por isso que vemos tanta
gente infeliz e em relações frustradas à nossa volta?
Amar dá muito trabalho, exige tempo, dói. Porém, acho que pecamos sobretudo por
não conseguirmos fechar os olhos nos braços da outra pessoa, como faz um bebé
no colo da mãe. Nunca vamos amar enquanto não formos capazes de fechar os olhos
nos braços de alguém, porque isso é outra forma de dizermos «Sente. Olha para
mim, sente-me em ti, pensa por nós.» E não há nada que valha mais a pena.
Eduardo Sá
In Noticias Magazine
13 de novembro de 2017