terça-feira, 31 de julho de 2018

Como uma flor vermelha




Como uma flor vermelha


À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece

Exausta, inútil, alheia.

Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.

Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.


Sophia de Mello Breyner Andresen .
in "Obra Poética I"



                                            Lola

domingo, 29 de julho de 2018

Teus olhos


TEUS OLHOS


Teus olhos são a pátria do relâmpago e da lágrima, 
silêncio que fala, 
tempestades sem vento, mar sem ondas, 
pássaros presos, douradas feras adormecidas, 
topázios ímpios como a verdade, 
outono numa clareira de bosque onde a luz canta no ombro 
duma árvore e são pássaros todas as folhas, 
praia que a manhã encontra constelada de olhos, 
cesta de frutos de fogo, 
mentira que alimenta, 
espelhos deste mundo, portas do além, 
pulsação tranquila do mar ao meio-dia, 
universo que estremece, 
paisagem solitária.


OCTAVIO PAZ, in LIBERTAD BAJO PALABRA 
(México, Fondo de Cultura Económica, 1960)
(Tradução de Luis Pignatelli)


                                            Lola

sábado, 28 de julho de 2018

Quase se vê daqui, o Verão



Quase se vê daqui, o Verão

Quase se vê daqui, o Verão:
a luz crispada sobre o muro,
a haste do trigo prestes a partir,

essas crianças cantando nuas
nas ruínas da memória,
uma abelha talvez equivocada,
era um dia que dava para o mar.




Eugénio de Andrade.
in "O Peso da Sombra"


                                            Lola

Penso em você






Penso em você


Penso em você quando o brilho do sol
Irradia do mar;
Penso em ti quando o brilho da lua
Está a ver as fontes.

Estou a ver-te quando estás longe.
Levanta-se o pó;
À noite, quando na ponte fina
O viajante está a tremer.

Escuto você onde com sombrio motivando
A onda eleva-se;
Na floresta silenciosa vou muitas vezes e Brasil
Quando tudo e silêncio.

Estou perto de ti, ainda que tão longe
Estás ao meu lado.
Cala o sol; daqui a pouco cintilarão as estrelas.
Se estivesses aqui, agora!



João Wolfgang Goethe




                                            Lola

Para atravessar contigo o deserto do mundo





PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO

.
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

.
Por ti meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso 

.
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo 

.
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in LIVRO SEXTO( 1962),
 in OBRA POÉTICA (Caminho, 2010),
 in OBRA POÉTICA (Assírio & Alvim, 2015)




                                            Lola

Como nuvens pelo céu





Como nuvens pelo céu


Como nuvens pelo céu 
Passam os sonhos por mim. 
Nenhum dos sonhos é meu 
Embora eu os sonhe assim. 

São coisas no alto que são 
Enquanto a vista as conhece, 
Depois são sombras que vão 
Pelo campo que arrefece. 

Símbolos? Sonhos? Quem torna 
Meu coração ao que foi? 
Que dor de mim me transtorna? 
Que coisa inútil me dói? 


Fernando Pessoa.
17-6-1932 
In Poesias Inéditas (1930-1935)



                                            Lola

Amigo




AMIGO

"A felicidade de um amigo
deleita-nos.
Enriquece-nos.
Não nos tira nada.
Caso a amizade sofra com isso,
é porque
não existe".

Jean Cocteau


                                            Lola

Dormes


DORMES

Dormes.
Não há no mundo senão teu rosto.

O céu sob o tecto
espera comigo que despertes.
O meu único relógio
é a sombra imóvel no chão do quarto.
A curva da terra
em tua pálpebra desenhada:
no teu sono me embala
Dormes-me.

Mia Couto


                                            Lola

Velha chácara




Velha chácara

A casa era por aqui…
Onde? Procuro-a e não acho.

Ouço uma voz que esqueci:

É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa…
– Mas o menino ainda existe.


Manuel Bandeira



                                            Lola

Quanto fui peregrino





Quanto fui peregrino



Quanto fui peregrino

Do meu próprio destino!
Quanta vez desprezei
O lar que sempre amei!
Quanta vez rejeitando
O que quisera ter,
Fiz dos versos um brando
Refúgio de não ser!
.
E quanta vez, sabendo
Que a mim estava esquecendo,
E que quanto vivi —
Tanto era o que perdi —
Como o orgulhoso pobre
Ao rejeitado lar
Volvi o olhar, vil nobre
Fidalgo só no chorar...
.
Mas quanta vez descrente
Do ser insubsistente
Com que no Carnaval
Da minha alma irreal
Vestira o que sentisse
Vi quem era quem não sou
E tudo o que não disse
Os olhos me turvou...
.
Então, a sós comigo,
Sem me ter por amigo,
Criança ao pé dos céus,
Pus a mão na de Deus.
E no mistério escuro
Senti a antiga mão
Guiar-me, e fui seguro
Como a quem deram pão.
.
Por isso, a cada passo
Que meu ser triste e lasso
Sente sair do bem
Que a alma, se é própria, tem,
Minha mão de criança
Sem medo nem esperança
Para aquele que sou
Dou na de Deus e vou.



Fernando Pessoa,.
7-10-1930
Poesias Inéditas (1919-1930)



                                            Lola

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Avô e Neto

Giorgios Yakovides

O AVÔ E O NETO

Ao ver o neto a brincar,
Diz o avô, entristecido,
«Ah, quem me dera voltar

A estar assim entretido!


Quem me dera o tempo quando
Castelos assim fazia,
E que os deixava ficando
Às vezes p´ra o outro dia;


E toda a tristeza minha
Era, ao acordar p´ra vê-lo,
Ver que a criada já tinha
Arrumado o meu castelo.»

Mas o neto não o ouve
Porque está preocupado
Com um engano que houve
No portão para o soldado.


E, enquanto o avô cisma, e triste
Lembra a infância que lá vai,
Já mais uma casa existe
Ou mais um castelo cai;


E o neto, olhando afinal
E vendo o avô a chorar,
Diz, «Caiu, mas não faz mal:
Torna-se já a arranjar.»

.
Fernando Pessoa,
 in Poesia para Crianças.


Felix Schelsinger

                                            Lola

terça-feira, 24 de julho de 2018

Amei Demais





Amei Demais

Madruguei demais. Fumei demais. Foram demais 
todas as coisas que na vida eu emprenhei. 
Vejo-as agora grávidas. Redondas. Coisas tais, 
como as tais coisas nas quais nunca pensei.




Demais foram as sombras. Mais e mais. 
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei 
do imenso mar de sol, sem praia ou cais, 
de onde parti sem saber por que embarquei.


Amei demais. Sempre demais. E o que dei 
está espalhado pelos sítios onde vais 
e pelos anos longos, longos, que passei

à procura de ti. De mim. De ninguém mais. 

E os milhares de versos que rasguei 
antes de ti, eram perfeitos. Mas banais.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'



                                            Lola

Papel


Papel

O papel que me escreveste
Era uma carta a fingir.
Não foi isso que disseste.

Se acredito, é para rir.


Foi isto, não foi aquilo.
Razões tem-nas quem as tem.
Não me ralo. Estou tranquilo.
Se estás contente, está bem.

Palavras e assim é tudo.
Cá por mim, são as que são.
Quando é preciso, sou mudo,
E falo noutra ocasião.

Leio e releio de chofre
A carta que nada diz.
Sei lá se a minha alma sofre.
Sabe alguém se é infeliz?


Fernando Pessoa
5 - 9 - 1930 
In Poesia 1918-1930





                                            Lola