sábado, 7 de dezembro de 2019

E quando nos beijávamos......





E quando nos beijávamos......



E eu perdia a respiração e, entre suspiros, perguntava: Em que dia nasceste? E me respondias com voz tremula: Estou nascendo agora...

Mia Couto



                   
                                                Lola

sábado, 23 de novembro de 2019

O Poema Pouco Original do Medo





O Poema Pouco Original do Medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis


Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos



O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
       (assim assim)
escriturários
       (muitos)
intelectuais
       (o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles



Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados



Ah o medo vai ter tudo
tudo



(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos



Sim
a ratos


Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado'


                                                Lola

José Mário Branco

By Vasco Gargalo




José Mário Branco

Eu Vim de Longe


Quando o avião aqui chegou
Quando o mês de maio começou
Eu olhei para ti
Então eu entendi
Foi um sonho mau que já passou
Foi um mau bocado que acabou


Tinha esta viola numa mão
Uma flor vermelha n'outra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a fronteira me abraçou
Foi esta bagagem que encontrou



Eu vim de longe
De muito longe
O que eu andei p'ra'qui chegar
Eu vou p'ra longe
P'ra muito longe
Onde nos vamos encontrar
Com o que temos p'ra nos dar

E então olhei à minha volta
Vi tanta esperança andar à solta
Que não exitei
E os hinos cantei
Foram frutos do meu coração
Feitos de alegria e de paixão

Quando a nossa festa s'estragou
E o mês de novembro se vingou
Eu olhei p'ra ti
E então entendi
Foi um sonho lindo que acabou
Houve aqui alguém que se enganou

Tinha esta viola numa mão
Coisas começadas noutra mão
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi p'ra esta força que apontou


Muito Obrigado, José Mário Branco, pela inquietação, pela intervenção, pelo protesto, pelo comprometimento, pelo imperativo de cantar a esperança de Abril continuamente Inacabado!
Até um dia!


                                               Lola

domingo, 3 de novembro de 2019

Na noite em que não durmo




Na noite em que não durmo

Na noite em que não durmo
Não dorme
O relógio também.
Pus na alma esvurmo.
É enorme
O que a treva contém.
.
Podridão da alma, moribundo
Do que me julguei ser,
Ouço o mundo.
É um vento surdo e fundo,
Que do abismo profundo
Vela o meu morrer.
.
Indiferente assisto
Ao cadaverizar
Do que sou.
Em que alma ou corpo existo?
Vou dormir ou despertar?
Onde estou se não estou?
.
Nada.
É na treva onde fala
O relógio fatal,
Uma grande, anónima sala,
Uma grande treva onde se cala,
Um grande bem que sabe a mal,
Uma vida que se desiguala,
Uma morte que não sabe a que é igual.
.

Fernando Pessoa,
Novas Poesias Inéditas


                                                Lola




CAI A CHUVA ABANDONADA









CAI A CHUVA ABANDONADA



Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente
do que me fala à razão.

Mas a razão é limite
do que tem ocasião
de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.

Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.
.

Vergílio Ferreira
in "Conta-Corrente"








                                                                            Lola

Embriaga-te





Embriaga-te


Deve-se estar sempre bêbado. É a única questão.

A fim de não se sentir o fardo horrível do tempo,

que parte tuas espáduas e te dobra sobre a terra.

É preciso te embriagares sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude?
A teu gosto, mas embriaga-te.

E se alguma vez sobre os degraus de um palácio,
sobre a verde relva de uma vala,
na sombria solidão de teu quarto,
tu te encontrares com a embriaguez já minorada ou finda,

peça ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio,
a tudo aquilo que gira, a tudo aquilo que voa,
a tudo aquilo que canta, a tudo aquilo que fala, a tudo aquilo que geme.

Pergunte que horas são. E o vento, a vaga, a estrela, o pássaro,
o relógio, te responderão.
É hora de se embriagar!!!

Para não ser como os escravos martirizados pelo tempo, embriaga-te.
Embriaga-te sem cessar.
De vinho, de poesia ou de virtude.
A teu gosto.


Baudelaire(1821-1867), poeta francês.



                                                Lola


domingo, 27 de outubro de 2019

UM DIA ISTO TINHA QUE ACONTECER





UM DIA ISTO TINHA QUE ACONTECER

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.

Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquer coisa phones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).

Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.

E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?

por Mia Couto

E eu, orgulhosamente Professora, que todos os dias lido com jovens...
às vezes....
...também me sinto, desconfortavelmente, à rasca!


Lola

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Há almas que têm...




Há almas que têm...

Há almas que têm
azuis luzeiros,
manhãs murchas
entre folhas do tempo,
e castos rincões
que guardam um velho
rumor de nostalgias
e sonhos.

Outras almas têm
dolentes espectros
de paixões. Frutas
com bichos. Ecos
de uma voz queimada
que vem de longe
como uma corrente
de sombra. Recordações
vazias de pranto
e migalhas de beijos.

Minh’alma está madura
faz muito tempo,
e se desmorona
turva de mistério.
Pedras juvenis
roídas de sonho
caem sobre as águas
de meus pensamentos.
Cada pedra diz:
“Deus está muito longe!”

Federico Garcia Lorca 

    PS: 
Só porque hoje falei, nas minhas aulas de Filosofia,  da distinção Alma-Corpo em Descartes!



                                                Lola