Coração e Amor
O Amor está no coração ou afasta-se durante os actos cirurgicos?
Manuel Antunes: "Já abri 45 mil corações e nunca lá encontrei o
amor"
Foi até há cinco semanas o diretor do
serviço de cirurgia cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra,
saiu por ter atingido o limite de idade legal, de 70 anos. Mas mantém a
intenção de continuar a tratar doentes.
O cirurgião
Manuel Antunes despediu-se do seu serviço - já que o fundou há 30 anos - de
cirurgia cardiotorácica em Coimbra no final do mês de julho. Sai porque a lei
não o deixa trabalhar mais, mas já está à procura de formas de se manter
próximo dos doentes e da prática clínica. Foi depois da sua reforma compulsiva
que o governo anunciou a intenção de rever esta lei. Mas a despedida forçada do
médico acabou por ser bem vista pela sua família: "Eles têm a expectativa
de que agora me dedique mais a eles." E até promete um cruzeiro "ou
dois" à mulher, companheira dos últimos 46 anos. O retrato de um homem que
se dedicou em exclusivo ao Serviço Nacional de Saúde, sempre defendeu como
essencial tratar os doentes com carinho e que reza antes de entrar nas
operações mais complicadas.
Acabou de
chegar de férias. Já pensou no que vai fazer a seguir?
Tinha tomado a
decisão de não misturar nada enquanto estivesse no serviço público. É óbvio que
estando-me vedada a atividade no serviço público mas sentindo-me física,
psicológica e animicamente bem, quero continuar a tratar doentes. Não estou
orientado para nenhuma dessas nomeações mais ou menos honoríficas que a gente
vê tantas vezes as figuras públicas terem depois da reforma, aquilo que costumo
chamar de quadro de pendurar na parede. Não quer dizer que não possa aceitar,
se for convidado para isso, e houve alguma menção disso, qualquer coisa que me
dê alguma atividade intelectual mas que não me impeça de fazer trabalho
clínico. Sendo certo que a alternativa é o setor privado, nunca será, nem pouco
mais ou menos, tão intensa como a atividade clínica que eu tinha. Até à véspera
do meu dia de jubilação operei com a mesma intensidade com que operava há 30
anos. Estava ultimamente a operar dez, 12 doentes por semana, e isso obviamente
não existe em clínica privada, e agora vou ter tempo para outras coisas, o que
eu chamo atividades extracurriculares.
Que seriam, por
exemplo, consultoria para o Ministério da Saúde?
Sim, o ministro
da Saúde disse que viria ter comigo. Naquilo que eu possa ajudar, algum grupo
de trabalho que investigue qualquer coisa, desde que isso não seja uma tarefa
que me ocupe o tempo todo e que me impeça de trabalhar em clínica com doentes.
Essa é a minha primeira prioridade, trabalhar com os doentes. Não quero estar
parado, embora ache que também é tempo de a gente começar a pensar que a vida é
assim mesmo. Para o fim da vida tem de começar a reduzir o esforço físico e
tudo.
Gostava de
deixar a sua marca também no sistema de forma mais geral?
Durante todo o
tempo da minha atividade clínica não deixei de escrever, de conferenciar, de
dizer em entrevistas aquilo que ia pensando sobre o Serviço Nacional de Saúde
[SNS] e a maneira de o tornar mais eficiente e mais eficaz. Lembra-se que
escrevi um livro que dizia Serviço Nacional de Saúde: Ineficiência e
Desperdício. Aquilo em que eu possa contribuir, contribuirei. E até
talvez me sinta mais livre para expressar o meu pensamento, sem ter de
pensar... Nunca tive receios pessoais, de represálias ou qualquer coisa, e nem
me passa pela cabeça que isso pudesse existir. Mas enquanto estive no SNS não
era apenas o indivíduo Manuel Antunes, representava um serviço e, de certo
modo, representava também 120 pessoas que trabalhavam neste serviço, e,
portanto, nós temos de ter alguma cautela em distinguir aquilo que é a opinião,
o pensamento individual, daquilo que é o institucional, e eu era institucional,
até agora. Agora deixei de ser institucional e passo a ser apenas o cidadão
Manuel Antunes, não estou preso a nada.
Com os colegas do serviço que coordenou durante 30 anos.
O facto de ter
trabalhado sempre no SNS dava-lhe mais liberdade para poder criticar o SNS?
Também. Se
fosse apenas dedicado ao serviço privado, não tinha bases para criticar o SNS.
Sempre entendi dizer aquilo que deveria dizer, não no sentido de criticar, por
criticar, mas no sentido de apontar onde é que estariam as deficiências e o
caminho que entendia que se devia seguir. Contudo, tive pouco sucesso nisso,
fui muito pouco ouvido, por ser uma pessoa que estava em média 12 horas por dia
no serviço. Viajo também para o estrangeiro, vou a congressos, a reuniões, a
convites, mas as minhas fugas são sempre de dois, três, quatro dias, no máximo.
E devo dizer que nos últimos, pelo menos, 15 anos todas essas saídas foram
feitas no meu período de férias. Deixei de pedir autorização, a determinada
altura, para me ausentar. Teria direito a 15 dias úteis para essa atividade
além das minhas férias, mas assim estava mais livre. Não que fosse para algum
sítio onde me envergonhasse de estar, onde não devesse estar, por ser
inconveniente por qualquer razão, mas porque entendia que não tinha de dar
conhecimento de uma coisa que era mais particular. Quando vamos a um congresso,
vamos para aprender, para ensinar, e tudo isso se reflete na atividade
exclusiva que tinha para o hospital. Achei que assim estava também mais livre.
E essa escolha pelo SNS foi consciente?
Quando cheguei
a Coimbra, vinha da África do Sul, onde estive quase 14 anos, num sistema que
era essencialmente de exclusividade. Lá não se falava em exclusividade, o
sistema era assim. Havia a possibilidade de o diretor de serviço convidar gente
que estava exclusivamente na atividade privada, digamos, a vir fazer uma
demonstração. Podia convidar alguém para vir trabalhar uma manhã ou duas por
semana no serviço em que essa pessoa viria fazer cirurgia muito específica ou
vinha ensinar os residentes. Mas havia uma separação completa entre o público e
o privado. Eu ascendi ao lugar de diretor serviço e professor titular da
cadeira, o equivalente ao catedrático aqui, porque o meu diretor resolveu ir
para a clínica privada. Já vim com esse estilo, que é mais ou menos americano,
um estilo inglês com grandes influências americanas. Depois vim para aqui, e na
altura, diria que 99% dos médicos que trabalhavam nos hospitais públicos
trabalhavam também em clínica privada. Achei que não estaria interessado nisso,
logo no início. Vinha para construir um novo serviço e não via nenhum
conveniente. Previ que para o tipo de atividade que queria fazer, em termos
pedagógicos, dedicar-me exclusivamente ao SNS era suficiente. Tem algumas
outras vantagens. Durante estes 30 anos, embora os doentes me considerassem o
seu médico, nenhum deles era meu doente exclusivo. Era doente da equipa.
Aconteceu inúmeras vezes sair da sala de operações diretamente para o carro ou
para o comboio para apanhar um avião, em Lisboa, duas horas mais tarde, até
antes mesmo de o doente sair da sala de operações. Tinha uma equipa que tomava
conta dos doentes durante a minha ausência. Se o indivíduo trabalha em privado,
o doente é seu doente e tem a responsabilidade própria, não a pode
verdadeiramente delegar em ninguém. Portanto, isso tem muita vantagem. E depois
a gente trabalha em equipa - ainda hoje é assim depois de eu sair -, há uma
reunião todos os dias em que são discutidos os casos do dia seguinte. Embora a
minha opinião fosse sempre de maior peso, a opinião dos outros todos contava.
Cada um dava a sua opinião e eu poderia dizer, e disse-o muitas vezes,
"tem razão, não estava a pensar bem". Tudo isso tem vantagens que o
sistema privado, tal como existe em Portugal, não tem. Já começa a haver um ou
dois hospitais privados - em Lisboa, no Porto, até em Coimbra - que começam a
querer funcionar assim, mas verdadeiramente não têm equipas, podem depois pedir
a opinião uns dos outros, mas não têm esta consistência de equipa que tem o
hospital público, ou melhor, que têm alguns serviços do hospital público.
Porque uma das criticas que faço ao hospital público é e isto talvez seja uma
caricatura, mas costumava dizer que quando um indivíduo se torna especialista a
primeira coisa que faz é perguntar - na cirurgia - 'quais são os meus dias de
sala de operações e quais são as minhas camas e qual é o meu dia de consultas'.
Fala-se muito das tiras no serviço, 'esta é a tira do não sei quantos' e às
vezes a gente tem serviços onde há uma parte das camas completamente ocupadas e
aquele cirurgião ou aquele médico não pode fazer mais, apesar de haver camas
vazias porque as camas não lhe pertencem, não estão sob a sua responsabilidade.
Não foi nunca dessa maneira que trabalhámos aqui, e eu chamei a atenção para
isso várias vezes.
Conseguiu
construir um serviço especial?
Não há
campeonatos nacionais nem mundiais dos serviços. O serviço tem características
muito próprias que estão um pouco ligadas ao ADN Manuel Antunes e à minha maneira
de construir as coisas, que uns acham que é benéfica. O senhor ministro
da Saúde tem utilizado com alguma frequência um termo que ele inventou antes de
ser ministro, que é a manuelantunização dos serviços, que é esta coisa de ter o
controle completo do que se passa no serviço. Com delegação de competências
noutros profissionais do serviço, evidentemente, mas assumindo tudo. Aquilo que
temos aqui é um serviço que tem muito dessas características, que, volto a
dizer, é uma construção verdadeiramente em equipa, e isso poucos serviços têm,
pelo menos com a extensão que nós tínhamos aqui, com a intensidade que nós
tínhamos aqui, com a dedicação que nós tínhamos aqui. Tanto quanto sei dos
outros serviços públicos nesta área, continuam muito a funcionar à base do
cirurgião, dos seus dias de sala de operações, há pessoal que está mais
agregado a um cirurgião ou a outro. E de uma maneira geral, tanto quanto sei,
nos vários serviços do país haverá exceções, ainda se funciona muito nessa base
de o cirurgião A tem aquela equipa de internos, o cirurgião B tem aquela, tem
os seu dias de intervenção e tudo. Aqui não, nesta reunião que fazemos na
véspera para ver os doentes ou para discutir e depois ver os doentes que são
operados no dia seguinte, ninguém fica a saber no dia seguinte para que sala é
que vai e para que doente. De facto, nunca estabeleci - há exceções dependendo
do problema em si -, mas de uma maneira geral não era eu que dizia, era a
escolha própria dos vários cirurgiões, "eu depois vou para aqui, para aqui",
mas era quase numa ótica de disponibilidade no momento; "aquela sala já
está a arrancar, nós estamos a fazer a visita à enfermaria, depois vai para lá
fulano tal e levo mais qualquer coisa", e penso que isso é de uma maneira
geral um pouco sui generis, único no país.
E isso poderia
ser alargado a outros serviços?
Facilmente. Mas
criou-se este espírito da autonomia e da independência de que as pessoas são
muito cientes. "Sou especialista, sou responsável pelos meus atos, não
tenho de dar satisfação a ninguém", mesmo num serviço público isso
prevalece. Eu penso que é errado.
"A porta não me foi fechada"
Continua a vir
ao serviço porque gosta de se manter ligado?
Não, eu vou...
Um Presidente da República disse "ao professor Manuel Antunes dou-lhe um conselho:
afaste-se do seu instituto". Mas eu deixei ainda algumas pequenas coisas
por fazer, estou a preparar uma sala, digamos museu Manuel Antunes, onde deixo
as medalhas aqui arrumadas porque não tenho espaço em casa para as pôr. Um dia
se alguém as quiser deitar para o lixo pode fazê-lo, há aí um parque de
computadores que estava a tentar renovar, mas as coisas atrasaram-se e eu tenho
vindo. A porta não me foi fechada e, portanto, eu venho cá, mas por isso mesmo
é que estamos neste gabinete que hoje [na quinta-feira 23 de agosto, quando
decorreu a entrevista] não está a funcionar, para não estarmos a utilizar
nenhum gabinete oficial. Passo, digo olá, não é impunemente que a gente
trabalha, há aqui pessoas que trabalharam comigo desde o primeiro dia há 30
anos, a gente pode encontrar-se lá fora, mas também podemos visitá-los aqui.
Nas áreas com doentes tenho passado, mas não entro nos quartos, não entro na
unidade de cuidados intensivos, não voltei ao bloco operatório e, portanto,
tenho evitado isso. A gente não pode tentar interferir com o trabalho de quem
está a seguir. Já disse várias vezes que, naturalmente, espero que estes
princípios filosóficos de que temos estado a falar se mantenham, porque acho
que eles fazem parte agora do ADN do serviço, mas há muitos métodos, há muitas
maneiras de chegar a qualquer sítio. Há sempre vários caminhos e não quero
interferir com isso.
Os seus colegas
do serviço ainda lhe pedem conselhos?
Não. Já
passaram cinco semanas desde que me afastei e já tenho discutido aí um ou outro
doente. Eu disse que estava disponível para qualquer coisa que necessitem, mas
tenciono interferir o menos possível.
Mas se for solicitado para dar uma opinião fá-lo-á.
É uma opinião,
mas sempre com a coisa de "não me venham dizer que foi a minha
opinião". Dou a minha opinião, aceitam-na se entenderem, mas o juízo final
é deles, porque não sou mais responsável pelo resultado de nenhum doente. É um
sistema que acho que é demasiado rígido e devia ser possível de outra maneira.
Mas estar muito ligado a uma coisa em que trabalhamos durante 30 anos, depois
ver alguém mudar qualquer coisa pode ser desagradável para mim, mas também é
desagradável para quem está, sentir que há um olho por cima do ombro, sempre a
espreitar o que está a fazer e a limitar naquilo que pode fazer. Eu tenho
procurado isso ao máximo. Veja que vem aí agora, e penso que tenha sido
desencadeada exatamente pela minha, esta questão da reforma aos 70 anos. E
logo houve pessoas que me enviaram mensagens de parabéns, "então
vais voltar". Eu não sei o que vai acontecer amanhã, nem sei o que a
lei vai dizer, mas é altamente improvável que agora alguém já tomou conta disto
voltar e dizer "arreda-te lá para trás que vou voltar para aqui". Até
porque a boa vontade que tinha de todo o pessoal que trabalhava comigo, pelo
menos da grande maioria, essa gente nova está agora muito ansiosa e
desejosa de provar que também é capaz de fazer e, voltando para trás,
eu corria o risco de perder pelo menos parte dessa boa vontade. Acho que não se
deve fazer.
"Ver alguém mudar qualquer coisa pode
ser desagradável para mim, mas também é desagradável para quem está, sentir que
há um olho por cima do ombro."
Preparou essa
transição com a equipa?
Infelizmente
não. Até setembro do ano passado tinha aqui a trabalhar comigo três colegas, já
reformados, com mais de 70 anos, que continuavam a trabalhar com contratos
anuais. E eu parti do princípio de que podia cá continuar à mesma. A dúvida era
se poderia ser diretor ou não nessas condições, mas era uma coisa que internamente
sempre se podia arranjar, e se não pudesse ser, estaria cá a trabalhar e,
portanto, em condições de ir mostrando a quem viesse como é que as coisas se
faziam. Em setembro, subitamente uma jurista do Ministério das Finanças
disse que era ilegal trabalhar depois dos 70 anos. E eu aí, meio ano
antes da minha data de saída, expus a situação ao ministro da Saúde e
manifestei a minha disponibilidade em continuar. Confesso que pensei - isso foi
discutido ao mais alto nível no país -, pensei que se pudesse ter arranjado uma
solução, e agora, a haver uma nova lei, a minha continuidade nem seria uma
exceção, mas uma antecipação de uma lei que podia sempre ter autorizado,
sujeito às condições que a lei ou o decreto-lei que vierem a ser aprovados. Não
foi possível e, como disse várias vezes, não saio zangado com ninguém, nem saio
perturbado com ninguém. E a prova é que estamos aqui nas instalações do
serviço, com autorização do atual diretor interino, sem que tenha problemas
nenhuns com isso. Embora o que estou a dizer hoje implica o Manuel Antunes, já
não implica ninguém do serviço.
"Não saio zangado com ninguém nem
saio perturbado com ninguém."
Veio da África
do Sul para criar este serviço. O que o motivou?
Vivi toda a
minha vida - ou grande parte, até aos 28 anos - em Moçambique, que era então
uma província portuguesa, com o sistema português. Fui, na altura, convidado
para ser docente da faculdade como assistente, o que ao fim de dois anos me
permitiu pedir uma bolsa de estudo para fazer um doutoramento. Éramos vizinhos
da África do Sul, que era uma potência em termos de saúde muito boa, e
pareceu-me lógico, tendo todo o resto da família em Moçambique, ir para
Joanesburgo, que estava a 550 quilómetros. Portanto, era muito fácil e fui para
Joanesburgo. A ideia era estar lá dois anos e meio ou três para completar o
doutoramento e voltar para a universidade à qual estava ligado. Com o 25 de
Abril, a independência de Moçambique e o fecho das fronteiras com a África do
Sul por razões políticas, não pude voltar e informei a universidade de
que me desligava, devolvi o dinheiro todo que tinha recebido da bolsa,
aliás, nem tinha mexido, estava numa conta num banco ainda em Moçambique, e
desliguei-me e fiquei lá. Depois fiz um caminho diferente. Não me doutorei
logo, preferi completar a especialização que ia fazer - cirurgia geral - e
depois passei para a cirurgia cardiotorácica, e no fim de ter o título de
especialista é que fiz o doutoramento. Acabei por fazer uma carreira que foi
quase meteórica, de passar do primeiro degrau da carreira muitos degraus até ao
último, porque quando saí era diretor do departamento e professor catedrático
da universidade de Witwatersrand, que era, e é, um dos nomes grandes do ensino
universitário internacional. Entretanto a família que vivia em Moçambique
voltou para Portugal e eu vinha todos os anos com a mulher e os três filhos a
Portugal, uma viagem de 12 horas de avião, dez mil quilómetros, e a hipótese de
vir - já não diria o desejo, eventualmente seria um desejo - para Portugal,
continuar a minha carreira, era grande. Sobretudo a minha vinda foi determinada
não só pelo facto de que me ofereceram a possibilidade de criar um serviço
novo, mas também porque tinha filhos e queria voltar à minha pátria com
eles, e depois eles seguiam o caminho que quisessem, mas não queria ficar lá no
outro lado mundo. Foi um fator pessoal, profissional e vários fatores
familiares que me inclinaram para aceitar este convite. Sendo certo que tinha
internacionalmente mais hipóteses continuando lá, foi uma oportunidade única de
criar qualquer coisa. Em Coimbra, não havia um serviço propriamente formado,
havia um cirurgião e dois mais novos que iam fazendo alguma atividade cirurgia
torácica e cirurgia cardíaca; os resultados não eram bons. A determinada altura
- eu não tive influência nenhuma nisso, foi antes de me convidarem, esse
episódio é que espoletou o convite que me foi feito -, o diretor do serviço de
cardiologia disse que não mandaria mais nenhum doente para cirurgia. Havia
coisas feias como doentes a fugir do hospital na véspera da cirurgia. Cada vez
que vinha a Portugal nas férias com a família visitava um dos outros serviços
do país e havia alguns colegas diretores de serviço que diziam "ó Manuel,
deixa-te estar onde estás, estás muito bem, que aqui é muito difícil trabalhar,
é muito difícil fazer as coisas". Como sou um rebelde nessas
coisas, isso, ao contrário de me desanimar, até me estimulou a mostrar que era
possível fazer. E penso que claramente é possível. Num relatório que fiz em
1985, com este hospital acabado de construir, havia um espaço destinado ao
serviço para 250 doentes e eu achava que era preciso para, pelo menos, 450 a
500 doentes por ano. Dizia que era preciso, mudar umas paredes, umas portas, e
tinha acabado de ser feito, englobar alguns espaços vazios, o que originou
algumas críticas de algumas pessoas. Isto era um meio muito tradicional, e vem
um tipo de fora com ideias doidas, mas eu dizia que se isso fosse feito, tenho
a certeza de que num curto espaço de tempo nós transformaríamos o serviço num
dos melhores, senão o melhor, a nível nacional e até com repercussão
internacional. Penso que ao fim de meia dúzia de anos isso teria sido
conseguido.
"As pessoas que já nasceram coitadinhas hão de ser
coitadinhas toda a vida e são mais doentes"
Fala também
muito na necessidade de tratar os doentes com carinho.
Isso é
fundamental. Nós tratamos com ciência, no caso cirúrgico, com técnica, com
arte, porque isto é um pouco como fazer um fato, nem toda a gente é capaz de
fazer um casaco, mas temos o quarto aspeto que é tão importante, talvez até
mais importante do que os outros, que é tratar o doente como pessoa, com
humanidade, com carinho, estar lá ao pé dele. A nossa psique comanda muita
coisa, as pessoas que já nasceram coitadinhas hão de ser coitadinhas toda a
vida e são mais doentes e são mais infelizes. Nesse momento, que é muito
traumático, ninguém vai para uma sala de operações sem um bocadinho de receio,
é muito importante difundir confiança ao doente e depois acompanhá-lo. Todos os
dias, os doentes têm uma visita à enfermaria que é feita por toda a equipa às
07.30. Muitos doentes são acordados, pelo menos de um segundo sono, por essa
visita. E isso é absolutamente importante, os doentes ganham confiança, sentem
que estão acompanhados e, portanto, melhoram também mais rapidamente. Não tenho
qualquer dúvida sobre isso.
Foi mais
difícil manter essa atenção e esse carinho com os doentes quando passaram a ser
2000 por ano?
Não, porque a
equipa também aumentou. Apesar de dizer que mantinha o controlo de tudo, que
via os doentes todos, todos os dias, isso era fisicamente impossível. Mas os
doentes têm esta visita que estive a falar de manhã e que se repete à tarde por
volta das 16.00, e os doentes veem que não são acompanhados pelo Manuel Antunes
mas por outros cirurgiões com vários níveis de qualificação. E quando era
necessário vinha à enfermaria, sobretudo quando me diziam "temos lá em
baixo um doente que tem esta coisa, já agora se der opinião", "com
certeza, vamos lá em baixo". De tal maneira que os doentes sempre me
consideraram, apesar de tudo, médico deles. E isso é manifestado de vários
aspetos, como um círculo de amigos que nós temos extremamente ativo e que reúne
milhares de pessoas em almoços e jantares com regularidade.
É comum
encontrar pessoas na rua que o abordam porque as operou?
Sim. Uma amiga
fez anos no passado sábado e convidou-me para almoçar num restaurante para os
lados da Figueira da Foz. Já entrei atrasado e quando lá cheguei fui saudado
logo por um dos responsáveis do restaurante, que abriu a camisa e disse
"está a ver aqui?". Eu costumo chamar à cicatriz a minha assinatura,
e a assinatura dos outros. Nós operámos 45 mil doentes, com mais outros que já
tinha operado antes de vir para aqui. Se cada pessoa tiver um acompanhamento de
três pessoas, já para não falar da outra família à volta, isto dá à volta de
200 mil pessoas envolvidas, isto é, duas em cada cem pessoas no país
tiveram um contacto connosco. Já viu como é? Entro num avião com 150
pessoas e há grande probabilidade de estar lá uma pessoa que, pode não ter sido
operada, venha ter comigo e diga "olhe, o senhor não se lembra, mas eu sou
o marido de dona não sei quantos"; "Então como está?" "Está
bem."
"Há situações em que eu faço uma
pequena oração antes de entrar, porque tenho a noção de que as coisas não vão
ser fáceis com aquele doente."
E tem situações
que o marcaram?
Sim, muitas.
Isso acontece-nos todos os dias, porque esta é uma área que tem um impacto
psicológico muito grande. As pessoas sabem que o coração é o motor da vida ou,
pelo menos, o motor físico da vida, e que se ele não funcionar bem não vivem
bem, ou até que podem morrer. Há uma componente psicológica muito importante,
não é bem como uma hérnia, não estou a desvalorizar o trabalho de outros
colegas, mas a hérnia ou ficou curada ou não ficou, o indivíduo continua como
está, é reoperado. No coração não é. Há situações em que eu faço uma pequena
oração antes de entrar, porque tenho a noção de que as coisas não vão ser
fáceis com aquele doente, e às vezes nem sabemos exatamente antes de entrarmos
o que vamos encontrar, o que vamos fazer. Já disse muitas vezes que tenho muito
medo daqueles que têm muito medo, aquele medo muito doentio de ir para a
intervenção. Lembro-me de um doente que até ia para uma coisa que não era
extremamente complexa, a operação correu bem, mas o indivíduo na véspera
chamou-me e entregou-me um envelope a dizer para só abrir depois da operação se
alguma coisa corresse mal. Eu disse: "Ó homem, isso dá-me azar. Não sou
supersticioso, mas sou supersticioso das pessoas supersticiosas." E ele
disse para guardar aquilo. Correu bem, ele estava bem, e quatro dias depois fez
uma paragem cardíaca, subitamente, que a agente não sabe explicar e morreu. E a
carta era muito comovente e fiquei marcado por isso. E houve a carta da mãe de
um dador de órgãos. Um jovem de 28 anos que morreu num acidente e foi dador. A
carta está ali na parede, eu mandei ampliar para os doentes verem. E essa mãe
então escreveu-me uma carta, muito emotiva, a dizer que aquele coração
é uma parte da vida dela, e ela pedia, sabia que certamente o tinha utilizado
para o bem e que essa pessoa ia ser muito feliz, mas pedia-me encarecidamente
que dissesse aquela pessoa que tinha a obrigação de tratar bem aquele coração.
Outro caso foi do doente transplantado mais novo que nós tivemos, tinha uns 3
anos na altura, sobreviveu só quatro anos, depois morreu de uma leucemia. Nós
tínhamos aqui um carrinho que era só para ele brincar quando vinha à consulta,
e dávamos-lhe aqui de comer e ele gostava muito de massa, esparguete cozido em
branco só. Então ele dizia "esta massa é muito boa", e essas coisas
ficam sempre marcadas na nossa vida.
O coração é um órgão físico mas também emocional.
É. Um dia fui convidado para fazer uma palestra no Dia dos Namorados, na Quinta
das Lágrimas, que é um sítio também sobre o coração e o amor, e fui à procura,
em termos poéticos, de textos que juntassem a palavras coração e amor. No
início dessa palestra disse "já abri 45 mil corações e nunca lá encontrei
o amor". Mas nós necessitamos para nós próprios, independentemente até dos
nossos conceitos religiosos, de interiorizar qualquer coisa que seja para além
do aspeto puramente físico. E o coração tem isso e vai continuar por todo o
sempre a ser o símbolo do amor.
"Isto é demasiado complexo para ser apenas a obra do
acaso e da evolução darwiniana"
Falou já
diversas vezes na dimensão religiosa. É um homem crente?
Sou. Fui criado
num ambiente religioso, sou católico praticante, não sei se sou um bom
católico, talvez pudesse ser mais profundamente, mas tenho as minhas convicções
religiosas e acredito piamente que há qualquer coisa, tem de haver qualquer
coisa para além de nós que comanda isto tudo. Isto é demasiado complexo para
ser apenas a obra do acaso e da evolução darwiniana.
Mesmo sendo um homem da ciência. Isso não entra em conflito?
Não, penso que
não. É evidente que a gente tem de ser suficientemente flexível para saber
interpretar, contextualizar a história de Adão e Eva, que continua a estar lá,
mas penso que não há nenhum padre, nenhum bispo que continue a dizer "não,
aquilo era mesmo, agarrou-se num bocado de barro e moldou-se, e depois um
soprosinho e fez-se vida", porque a gente sabe que não é assim. Mas a
evolução não foi apenas consequência pura e simples da natureza, assim
acredito.
Acha que essa noção de que há algo mais o torna um melhor cirurgião?
Acho que sim.
Muito mais pessoas acreditariam em Deus se de cada vez que lá fossem bater à
porta ele fizesse aquilo que nós queremos. Ora, aquilo que nós queremos muitas
vezes entra em conflito com aquilo que os outros querem, ele teria aqui logo
uma dificuldade. E o que nos diz é: "Se quiseres fazer alguma coisa, tens
de trabalhar para isso." Mas também nos ajuda se nós pensarmos. Penso
assim.
E mexer no
coração, um órgão tão vital, não é um bocadinho fazer o papel de Deus?
Não. Estamos cá
para nos ajudarmos a nós próprios e fazermos as nossas próprias coisas.
Acredito em Deus como um ser supremo, mas não acho que ele esteja muito
preocupado com o Manuel Antunes individualmente. Estará preocupado com todos,
mas terei de me esforçar para isso e acho que me procuro orientar no sentido de
cumprir aquilo que é um dos mandamentos da lei de Deus, de que somos todos os
iguais. Ama ao próximo como a ti mesmo, e quando estou a operar estou a
fazer o melhor que posso. E essa é outra das vantagens de estar no serviço
público, corra bem ou corra mal, opere muito ou opere pouco, faça bem ou faça
mal, nada disso tem que ver com qualquer benefício financeiro ou pessoal, nada.
Enquanto na clínica privada não é assim. Faço no sentido de aplicar o melhor
que sei, e isso traz-me obrigações de estudar, de aprender.
Casou-se a 16 de julho de 1972, em Moçambique, e agradece a
dedicação da mulher, que lhe canta o fado "todas as noites" em casa.
"Ela foi fundamental."
Quando foi para
a África do Sul já se tinha casado?
Já me tinha
casado, tinha uma filha já com um ano e meio e tinha outra que vinha a caminho,
já tinha sido encomendada em pacote postal [risos].
A sua mulher decidiu então acompanhá-lo?
A minha mulher
foi absolutamente fundamental. Casámo-nos depois de eu terminar o curso, mas
ela estava no meio do curso de Economia, e quando fomos para a África do Sul -
até porque quando fomos a ideia era ser por dois ou três anos - ela tinha um
filho e já outra para nascer e achou que devia prestar-se ao papel de mãe e
tomar conta dos filhos. e foi assim que acabou por ser nesses 14 anos. Logo que
chegámos [a Coimbra] ela completou o curso, depois seguiu uma vida profissional
no ensino que ainda hoje tem. Mas foi, nesse aspeto eu devo-lhe muito
mais a ela do que ela me deve a mim, e já são 46 anos de casamento. E agora
com os netos seguimos. Na minha lição eu disse-lhes: "À minha mulher, aos
meus filhos e aos meus netos o agradecimento pelo tempo que não lhes dei e que
lhes era devido e que eu utilizei." Nesse aspeto, posso considerar que sou
um homem feliz, saio daqui com uma sensação de dever cumprido de uma vida que
foi de uma maneira geral bem conseguida. Não foi uma vida de cruzeiros e de
passeatas, também podia ter feito. Aquilo foi a vida que eu escolhi.
A sua família tinha esperança de que agora se dedicasse mais a eles?
Tinha e tem,
como disse no início. Tenho já duas missões humanitárias marcadas, como sempre
fiz, uma já para o mês que vem, na Jordânia, a operar crianças refugiadas
sírias, e tenho outra marcada em Moçambique no Instituto do Coração, onde vamos
já há 19 anos consecutivos. Seja como for, não será uma atividade tão intensa
como esta que tinha aqui e quero eu próprio dar mais tempo - aos filhos não,
que são adultos - aos netos, que são filhos deles e eles pensarão que, de certo
modo, é uma compensação. E naturalmente com a minha mulher também
passarei mais tempo, talvez fazer um cruzeiro ou dois.
Era uma coisa que ela lhe tinha pedido?
Não. Mas
raramente viajámos juntos e agora podemos visitar e ir a sítios para fazer uma
viagem puramente de turismo e de companhia, de namoro.
In DN, Ana Bela Ferreira
28 Agosto 2018 — 06:29
Lola