segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Obrigado!







OBRIGADO!




E...
um EXCELENTE ...


                                            Lola

sábado, 29 de dezembro de 2018

Natal





NATAL

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Era gente a correr pela música acima.

Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.



MANUEL ALEGRE, in POESIA (Dom Quixote, 2009)



                                            Lola

A espantosa realidade das cousas






A espantosa realidade das cousas


A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro


                                            Lola

As mulheres são umas víboras.




As mulheres são umas víboras

Pior que elas não conheço.
Gosto delas quando estão caladas, mas fora disso as coisas complicam-se.
Uma mulher bonita e calada é o paraíso, mas quando começa a falar e a querer analisar tudo, tintim por tintim, então começamos a aproximarmo-nos do inferno.
Quando a mulher começa aos gritos então chegamos mesmo lá.
É o inferno.
Por causa do tom de voz que utilizámos uma mulher é capaz de resmungar durante 3 dias.
O homem, pelo menos, é mais prático.
Depois de uma boa refeição, qualquer tom de voz é maravilhoso.
As mulheres não entendem isso.
Complicam as coisas.
Estão sempre a perguntar:
- Mas tu não me amas, pois não?
É claro que não.
Mas não lhes podemos dizer.
Se o disséssemos elas deixavam logo de nos amar. Era imediato.
Por isso, o melhor é ir adiando a questão. Não dizer a verdade.
De refeição em refeição até à refeição final.
É este o meu lema.
Acabaram-se os ovos?
Já não fazes aquele arroz bom?
Aquelas saladas? Dá muito trabalho?
Então, chegou a hora de partir.
Pegamos, pois, no casaco (é preciso não esquecer o casaco) e saímos à procura de um restaurante.
É assim que acabam as relações.
Os homens saem de casa à procura de um restaurante novo.
É quase sempre assim.
Vem nos livros.

Gonçalo M. Tavares




                                            Lola

Não sei quantas almas tenho.




Não sei quantas almas tenho


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.


24-8-1930
FERNANDO PESSOA (1888-1935)



Análise do poema "Não sei quantas almas tenho"

Este poema em análise é claramente um poema de reflexão por parte de Fernando Pessoa, e não tanto um poema de análise psicológica da sua mente. Dizemos isto recordando certas passagens do poeta em que este recorda ler o que escreveu com grande estranheza - é como se a sua obra lhe fosse estranha, quando ele percorre as páginas do seu passado. 

 Devemos compreender que em Pessoa a obra se confunde com a vida. Aliás, em determinados momentos Pessoa abdica da vida em favor da obra (o exemplo maior terá sido Ophélia, a sua única namorada conhecida). 

 É pois nesta perspectiva que - pensamos - este poema deve ser lido. Imaginemos Pessoa sentado perto da sua arca de inédito, num dos últimos meses de vida, relendo as páginas de há 5, 10, 20 anos... e o que lia ele, senão passagens quase irreconhecíveis, de outros «eus», que não ele mesmo. 

 Não sei quantas almas tenho.
 Cada momento mudei.
 Continuamente me estranho.
 Nunca me vi nem achei.
 De tanto ser, só tenho alma.
 Quem tem alma não tem calma.
 Quem vê é só o que vê,
 Quem sente não é quem é,

 Esta primeira estrofe mostra aspectos da famosa despersonalização de Fernando Pessoa. Ele diz não saber quantas almas tem, porque mudou a cada momento. Esta instabilidade é, no entanto, uma instabilidade de vida e não tanto uma instabilidade de "almas". Certo é que Pessoa, por sempre se expressar por outras vozes (heterónimas ou psudónimas), neste momento já não se reconhece - tudo lhe foi sempre estranho, porque colocou sempre em outras vozes os seus problemas. Esta exteriorização das coisas na sua vida torna-o estranho à própria vida - parece-lhe que foi outro que a viveu. Claro que este sentimento é uma protecção psicológica de Pessoa, de se recolher para dentro para não sofrer com a solidão. 

 A expressão "De tanto ser, só tenho alma", sendo curiosa, parece de fácil expressão. Pessoa quer dizer que não sente ter vida, mas só alma - ou seja, a sua vida foi (e é) toda pensada, toda racionalizada. Como sempre passou para pensamento tudo o que lhe acontecia, tudo o que sente é na alma, e parece que nada sente no corpo. Esta divisão corpo/alma é essencial no todo da obra de Pessoa e reflecte uma das características da mesma - a extrema racionalização, o reduzir de todos os impulsos a uma inteligência recusando as emoções puras. 

 Mas Pessoa sabe que a vantagem de tudo ser inteligência tem desvantagens: "Quem tem alma não tem calma", diz ele. Quer dizer que quem pensa não tem paz - eis um novo princípio de grande importância: é inconciliável pensar e viver, ou se vive sem pensar ou se pensa sem viver. Viver a vida ou pensar a vida é um oposto que sempre desafia Pessoa. 

 "Quem vê é só o que vê, / Quem sente não é quem é," marca ainda mais esta oposição viver/pensar. "Quem vê" é aquele que vive só a vida e não a pensa (sente). "Quem sente não é quem é" - quer dizer que o pensamento impede a acção na vida. Reforça o que dissemos anteriormente, que viver e pensar se tornam inconciliáveis.

 Atento ao que eu sou e vejo,
 Torno-me eles e não eu.
 Cada meu sonho ou desejo
 É do que nasce e não meu.
 Sou minha própria paisagem,
 Assisto à minha passagem,
 Diverso, móbil e só,
 Não sei sentir-me onde estou.

 Pessoa sentindo essa oposição pensar/viver transforma-se no papel, nas personagens dos seus heterónimos. E os heterónimos nascem das necessidades da sua vida - são filtros para o que vai acontecendo. À medida que são apresentados desafios a Pessoa, ele enfrenta-os indirectamente pelos seus filtros literários, pelas suas personagens literárias. Por isso ele diz que os sonhos e desejos é "do que nasce" e não dele. Ele como que apenas assiste à passagem da sua vida, porque se recusa vivê-la simplesmente. Tudo é analisado, dissecado, e tudo por isso se torna falso, uma ilusão de realidade simbolizada. 

 Pessoa é "diverso, móbil e só". Ou seja, multiplica-se, viaja, e está no final sozinho, sem salvação. Esta instabilidade, redução do um aos muitos, acaba por significar que ele deixa de sentir - "Não sei sentir-me onde estou". A vida é-lhe estranha e como a vida os sentimentos. Deixar de sentir é também deixar de viver - é alienar-se de tudo, proteger-se da vida, dos perigos, de tudo, para se recolher dentro de si, e por detrás dos seus personagens literários.

 Por isso, alheio, vou lendo
 Como páginas, meu ser.
 O que segue prevendo,
 O que passou a esquecer.
 Noto à margem do que li
 O que julguei que senti.
 Releio e digo: "Fui eu"?
 Deus sabe, porque o escreveu.

 "Alheio" ele lê então "como páginas" o seu "ser". Isto reforça o que vimos dizendo. A sua vida confunde-se com a sua obra - tanto que Pessoa diz ler como páginas o seu ser. A vida foi racionalizada, foi reduzida a linguagem escrita, transferida para os seus personagens literários, que acabam por viver a sua vida por si, por deixá-lo a um canto, reduzido quase a nada enquanto individualidade. 

 Pessoa-ele-mesmo apenas prevê e esquece. É uma espécie de pivot, de centro fisíco de tudo o resto, mas quase sem actividade. Ele é apenas uma "nota à margem" do livro que foi a sua vida. Alheio ao seu Destino (foi Deus que o escreveu), ele já não destingue quem nele viveu as coisas. 

 Retiremos deste poema a grande solidão de Pessoa - já reduzido a apenas uma nota de margem na vida (e na sua obra). Pessoa era a pessoa real, passando o pleonasmo, mas aqui torna-se evidente que a pessoa real foi obliterada, desmultiplicada em muitos outros, até que quase nada restasse do original. Nada para pensar, e sobretudo nada que sintisse o mundo à sua volta. Pessoa-ele-mesmo morreu para o mundo e já nada sente, e sobretudo o que sente é que a vida já não pode ser vivida senão por intermédio de um outro seu. E isto quer dizer que nele mesmo a esperança de viver estava definitivamente perdida



                                            Lola

Tenho pena de não saber







Tenho pena de não saber

Tenho pena
De não saber
Onde nasce o meu poema...

Um simples mote

Me fascina
Há um raio qualquer
Que me ilumina
E não consigo apagar!

O meu cavalo
Não conhece o trote...
Sangue puro,
Força nobre e bruta,
Transporta na garupa
Um vendaval de ideias
A galope...
Onde começa a estrada
Que me percorre as veias?
Cavalgo sempre sem freio
Sem rede,
Sem rédeas,
Dilatam-se as narinas
No torpel do pensamento
Crispam-se as "rugas"...
São impossíveis as fugas...
Não há médias
No acto louco de escrever
Solta-se o navio
A todo o pano
Não me chega o rio
Não me basta o mar
Se existe o oceano
Só lá vou navegar!
Será legítimo perguntar
Onde nasce o meu poema?
Onde morre o que escrevo
Nos meus versos?
Não sejam perversos...
Não faço planos
Serei o que tiver de ser
Nem melhor, nem pior...
Quero lá saber dos anos
Que não sinto...
Do tempo que não irei ter...
Quantas vezes eu
Sou só suor
E não me canso...
De viver!

Ophélia


                                            Lola

Sobre a Neve





SOBRE A NEVE 

Sobre mim, teu desdém, pesado jaz

Como um manto de neve... Quem dissera

Porque tombou em plena Primavera
Toda essa neve que o Inverno traz!


Coroavas-me inda há pouco de lilás
E de rosas silvestres... quando eu era
Aquela que o Destino prometera
Aos teus rútilos sonhos de rapaz!


Dos beijos que me deste não te importas, 
Asas paradas de andorinhas mortas... 
Folhas de Outono em correria louca...


Mas inda um dia, em mim, ébrio de cor, 
Há de nascer um roseiral em flor 
Ao sol de Primavera doutra boca! 
.
Florbela Espanca, 
In Reliquiae



                                            Lola


O grande poema

· 


O GRANDE POEMA

Este é o poema que eu escrevi
para as crianças da minha terra!...

Para as crianças negras,

e brancas,
e mestiças,
sem distinção de cor...
comungando o Amor
que as unirá...

Este é o poema que eu escrevi a sonhar,...
de olhos perdidos no mar,
que me separa delas...
O poema que escrevi a sorrir…
a gritar confianças desmedidas
nas ânsias partidas,...
quebradas,...
como velas de naufrágio!...
O poema que eu escrevi a soluçar,
sobre os livros
onde não encontrei
para os sonhos resposta um dia!...

Alda Lara - Poetisa Angolana


                                            Lola

E por vezes as noites duram meses




E por vezes as noites duram meses

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes



encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos .

David Mourão Ferreira





                                            Lola

A verdade é amor




A VERDADE É AMOR

A verdade é amor — escrevi um dia. Porque toda a relação com o mundo se funda na sensibilidade, como se aprendeu na infância e não mais se pôde esquecer. É esse equilíbrio interno que diz ao pintor que tal azul ou vermelho estão certos na composição de um quadro. É o mesmo equilíbrio indizível que ao filósofo impõe a verdade para a sua filosofia. Porque a filosofia é um excesso da arte. Ela acrescenta em razões ou explicações o que lhe impôs esse equilíbrio, resolvido noutros num poema, num quadro ou noutra forma de se ser artista. Assim o que exprime o nosso equilíbrio interior, gerado no impensável ou impensado de nós, é um sentimento estético, um modo de sermos em sensibilidade, antes de o sermos em. razão ou mesmo em inteligência. Porque só se entende o que se entende connosco, ou seja, como no amor, quando se está «feito um para o outro». Só entra em harmonia connosco o que o nosso equilíbrio consente. E só o consente, se o amar. Porque mesmo a verdade dos outros — a política, por exemplo — se temos improvavelmente de a reconhecer, reconhecemo-la talvez no ódio, que é a outra face do amor e se organiza ainda na sensibilidade.

VERGÍLIO FERREIRA, in PENSAR (Bertrand, 
1ª. Ed., 1992; Quetzal Editores, 2013)


Lola

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A pura face




A pura face

Como encontrar-te depois de ter perdido

Uma por uma as tardes que encontrei 
O ser de todo o ser de quem nem sei
Se podes ser ao menos pressentido?

Não te busquei no reino prometido
Da terra nem na paixão com que eu a amei
E porque não és tempo não te dei
Meu desejo pelas horas consumido

Apenas imagino que me espera
No infinito silêncio a pura face
Pr′além de vida morte ou Primavera
E que a verei de frente e sem disfarce

-
Sophia de Mello Breyner Andresen,
In Livro Sexto, 1962





                                            Lola