quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Ausente





A UM AUSENTE


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.



Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?



Tenho razão para sentir saudade de ti,

de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.



Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste


Carlos Drummond de Andrade


Outras ausências...


"O que é um homem sem memória?
Um homem que não se reconhece mais em nenhum

 tempo, nenhum lugar, nenhum rosto?





O livro narra na 3ª pessoa a história do professor de literatura Ervin e a dificuldade de lidar diariamente com o Alzheimer. Ervin possuía uma vida atribulada com as muitas aulas que ministrava na universidade, era uma mente exemplar e pouco a pouco sua vida começou a mudar devido à doença de Alzheimer. Recebia apoio apenas da filha (psicóloga) e da esposa recebia repreensões, o que deixava Ervin mais angustiado.

A filha Flávia descreve aos poucos os efeitos devastadores do Alzheimer. É um livro envolvente e que traz grandes lições, principalmente para aqueles que desconhecem a doença. Mostra, também, o quanto é difícil para a família manter-se forte diante de uma situação como esta e que é preciso redimir-se de todos os sentimentos negativos para cuidar daquele familiar com carinho.

A autora teve a iniciativa meritoria de compartilhar toda a turbulência de sentimentos e emoções no decorrer desta doença, conseguindo ao mesmo tempo mostrar o verdadeiro significado da vida.



"A Doença de Alzheimer é uma experiência devastadora.
Para o doente, a perda gradual da memória é o apagar do mais essencial que possuímos, do que nos define e nos diferencia, daquilo que faz de cada um de nós, humanos: nossa identidade.
Para o familiar, é a dor de um luto prologado, pois, embora esteja vivo, aquele à nossa frente vai, pouco a pouco, deixando de ser quem um dia conhecemos e amamos. Mas, a doença também pode ser uma experiência transformadora, um aprendizado diário de novas formas de relacionamento, a descoberta de outros meios de comunicação possíveis que independem da fala, do raciocínio, da razão: o olhar, o toque, o afeto.
E ainda, pode ser uma experiência que, transcendendo a realidade, serve como matéria-prima para a criação artística, alimento imprescindível para nosso espírito, por intermédio da qual podemos expressar, compartilhar e amenizar nossas dores, emoções e sentimentos"


Lola


Beijo




Beijo

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

                         Ricardo Reis

UM BEIJO


Um minuto o nosso beijo 
Um só minuto; no entanto 
Nesse minuto de beijo 
Quantos segundos de espanto! 
Quantas mães e esposas loucas 
Pelo drama de um momento 
Quantos milhares de bocas 
Uivando de sofrimento! 
Quantas crianças nascendo 
Para morrer em seguida 
Quanta carne se rompendo 
Quanta morte pela vida! 
Quantos adeuses efêmeros 
Tornados o último adeus 
Quantas tíbias, quantos fêmures 
Quanta loucura de Deus! 
Que mundo de mal-amadas 
Com as esperanças perdidas 
Que cardume de afogadas 
Que pomar de suicidas! 
Que mar de entranhas correndo 
De corpos desfalecidos 
Que choque de trens horrendo 
Quantos mortos e feridos! 
Que dízima de doentes 
Recebendo a extrema-unção 
Quanto sangue derramado 
Dentro do meu coração! 
Quanto cadáver sozinho 
Em mesa de necrotério 
Quanta morte sem carinho 
Quanto canhenho funéreo! 
Que plantel de prisioneiros 
Tendo as unhas arrancadas 
Quantos beijos derradeiros 
Quantos mortos nas estradas! 
Que safra de uxoricidas 
A bala, a punhal, a mão 
Quantas mulheres batidas 
Quantos dentes pelo chão! 
Que monte de nascituros 
Atirados nos baldios 
Quantos fetos nos monturos 
Quanta placenta nos rios! 
Quantos mortos pela frente 
Quantos mortos à traição 
Quantos mortos de repente 
Quantos mortos sem razão! 
Quanto câncer sub-reptício 
Cujo amanhã será tarde 
Quanta tara, quanto vício 
Quanto enfarte do miocárdio 
Quanto medo, quanto pranto 
Quanta paixão, quanto luto!... 
Tudo isso pelo encanto 
Desse beijo de um minuto: 
Desse beijo de um minuto 
Mas que cria, em seu transporte 
De um minuto, a eternidade 
E a vida, de tanta morte.
Vinicius de morais, Petrópolis , 1962



Lola

Chuva




Chuva

Custa muito ver partir os nossos alunos! Temo-los, por vezes, dois anos lectivos e aprendemos a rir em conjunto e a partilhar momentos carregados de pormenores surpreendentes!
Tal como uma parte dos docentes, jà chorei a perda de miudos que nos acompanharam, durante longos meses!
E, por isso mesmo, hoje lembrei-me de todos eles! Precisamente, porque...
Eu tive uma aluna de sorriso moreno de quem sempre gostei muito! Um dia tocou no funeral da minha DIANA e eu fiquei-lhe eternamente reconhecida! Numa tarde inexplicavel, perdi-a! E hoje ainda choro por elas! 
Esta interpretação genial de Berg é para si, minha querida Nàdia!


                          


                       Chuva





As coisas vulgares que há na vida
Não deixam saudades
Só as lembranças que doem
Ou fazem sorrir

Há gente que fica na história
da história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir

São emoções que dão vida
à saudade que trago
Aquelas que tive contigo
e acabei por perder

Há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

A chuva molhava-me o rosto
Gelado e cansado
As ruas que a cidade tinha
Já eu percorrera

Ai... meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob chuva
há instantes morrera

A chuva ouviu e calou
meu segredo à cidade
E eis que ela bate no vidro
Trazendo a saudade

Letra de Jorge Fernando





Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…
Fernando Pessoa


     Lola

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Histórias de amor



Volta ao mundo em dez histórias de amor


Por Andreia Marques Pereira
Demos a volta ao mundo, escolhemos histórias entre o real e a ficção e traçamos-lhes as geografias. Das clássicas de toda a vida a casos que podem deixar muito viajante a suspirar. Tudo por amor.
Portugal. Coimbra e Alcobaça

Pedro e Inês









Faz parte da mitologia portuguesa a história de D. Pedro e daquela “que depois de morta foi rainha”, Inês de Castro. Quem não conhece o amor de Pedro e Inês? Um amor sem limites que venceu a morte. Esta é a versão romântica que a literatura eternizou nos últimos séculos transpondo fronteiras — obras sobre Pedro e Inês, poesia, teatro e romance, foram produzidas em países como a Argentina ou Alemanha, Estados Unidos ou Itália, sem esquecer Espanha e, claro, Portugal, onde os pináculos continuam a ser o “Episódio de Inês de Castro”, em Os Lusíadas, e A Castro, obra magistral do teatro clássico português; e que continua a servir de inspiração a muitos. Afinal, não faltam os ingredientes para fazer deste episódio real uma história intemporal: amor superlativo, luta de poder, inveja, intriga, traição, morte, vingança — e talvez até redenção.

Foi em Coimbra que Pedro e Inês viveram o seu amor e a sua tragédia, depois da separação forçada por razões de estado. Porque se Pedro logo se apaixonou por Inês, dama do séquito da sua prometida, D. Constança de Castela, tudo foi feito para manter os dois amantes separados. Apenas depois da morte de D. Constança Inês voltou do exílio, tendo-se instalado com D. Pedro em Coimbra, no Paço da Rainha Santa, junto ao Convento de Santa Clara-a-Velha. Foi aqui, “nos saudosos campos do Mondego”, escreveu Camões, no antigo couto de caça da família real, de que hoje é herdeira a Quinta das Lágrimas, que ambos viveram e Inês morreu. Nos seus jardins, a Fonte dos Amores, para além da porta em ogiva e janela do século XIV, e a das Lágrimas permanecem como testemunhos do amor e da tragédia — nesta última, as algas encarnadas são, segundo a tradição, sangue de Inês.
Ali terá sido assassinada a mando de D. Afonso IV, pai de D. Pedro, aproveitando a ausência deste numa caçada. Foi enterrada no Convento de Santa Clara, mas não permaneceu aí. Depois de ascender ao trono, D. Pedro, a que a história deu os cognomes de Cruel ou Justiceiro, ordenou a execução (com requintes de crueldade) dos seus assassinos, revelou o seu casamento secreto (e improvável) com Inês, coroou-a rainha de Portugal e trasladou-a em procissão fúnebre para o Mosteiro de Alcobaça. Aí, encontra-se uma obra-prima da tumulária gótica europeia: o conjunto monumental das arcas tumulárias de Inês e de Pedro, frente a frente, para que quando acordassem no além a primeira visão fosse o rosto do ser amado. “Tu só, tu, puro Amor, com força crua/Que os corações humanos tanto obriga…”.

Itália. Verona


Romeu e Julieta







Fazem parte da cultura popular há séculos como protagonistas da maior história de amor de sempre, todos os anos celebrada: o livro nunca deixou as livrarias; nos palcos, dá a volta ao mundo várias vezes; no cinema é motivo recorrente. De Verona chegou-nos a história do jovem Romeu e da sua bela Julieta cuja versão canónica foi estabelecida pelo inglês William Shakespeare, no final do século XVI.
Não importa que as provas da existência de ambos sejam ténues. O certo é que a “varanda da Julieta” é o ex-líbris turístico da cidade do Norte de Itália. E isso quer dizer muito numa cidade que tem, por exemplo, o segundo maior coliseu romano em território italiano, ainda hoje palco de espectáculos, e onde Júlio César gostava de descansar. E que impressiona pelo conjunto edificado, onde se acompanha a transição entre o gótico e a renascença — paradigmático, o Arche Scaligere, monumental complexo funerário dos Scaligeri, a família veronesa mais poderosa da Idade Média, junto da igreja Santa Maria Antica, é imperdível.
Mas é a história dos dois jovens que, pertencentes a famílias rivais, se apaixonam, desafiam a autoridade paterna e têm um destino fatal que domina a cidade Património Mundial. A casa de Julieta Capuleto (na verdade, terá sido residência da família Cappello), em cuja varanda não falta quem encarne a personagem, é centro de peregrinações e rituais esperando a bênção da trágica heroína. Não muito longe desta, a “casa” de Romeu não merece tanta romaria, sobretudo porque sendo privada não é visitável e além de uma placa nada mais a liga ao drama. Indispensável nesta Verona ficcional é a visita ao “túmulo” de Julieta, onde se dá o desenlace funesto desta história de amores proibidos e enganos: ele repousa no claustro medieval do mosteiro capuchinho de San Francesco.
A torre Lamberti (medieval e a mais alta da cidade), o castelo, os museus, os muitos vestígios romanos, a magnífica Piazza dei Signori com a sua estátua de Dante e fechada por edifícios monumentais — estes são alguns dos motivos para ir a Verona. Contudo, nada é tão forte como as palavras do bardo: “Heaven is here, where Juliet lives”.


México. Cidade do México



Frida Kahlo e Diego Rivera





Foi um amor improvável e pouco convencional que teve o seu grande cenário na Cidade do México, o dos dois ícones maiores da arte mexicana. Quando Diego Rivera e Frida Kahlo se conheceram nada podia prever a relação intensamente apaixonada e torturada na mesma medida que os dois iriam viver e que iria dominar as suas vidas. Afinal, ela tinha 16 anos, era uma estudante marcada pelas cicatrizes (físicas e psicológicas) do acidente no trolley que lhe condicionaria a vida; ele, com 36 anos era um artista já consagrado, mulherengo inveterado (e afamado), já no segundo casamento e com vários filhos (incluindo ilegítimos). Casaram-se quatro anos depois, em 1929, divorciaram-se 10 anos depois para se voltarem a casar no ano seguinte. Transformaram-se nos dois ícones maiores da arte mexicana e a Cidade do México a tela da sua história.

Não há local que melhor conjure memórias de Diego e Frida do que o Coyoácan, bairro boémio e histórico da cidade onde fica a famosa Casa Azul, o epicentro do mundo de Kahlo. Mas antes da Casa Azul, onde Frida nasceu e onde haveria de viver com Rivera, há o Colégio de San Idelfonso. Foi aqui, bem no coração histórico do México D. F., ao lado do Templo Mayor, ágora da antiga Tenochtitlan, que ambos se conheceram. Ela estudava, ele pintava o mural La Creación — para eles, este seria o início da criação do seu mundo comum, da sua lenda: o seu amor e paixão pela arte.
E se a sua arte está por toda a cidade, sobretudo a de Rivera, muralista de excelência, é no Museu Casa Azul (construída pelo pai de Frida) que os visitamos, ao casal, aos artistas, numa intimidade cristalizada. O mesmo se passa no Museu Casa Estúdio Diego Rivera e Frida Khalo, no “vizinho” bairro de San Angél, o edifício, também conhecido por “casas gémeas”, mandado construir por Diego com duas casas, uma para cada um e com o seu próprio estúdio.
Já não estamos na sua órbita íntima, mas na artística, no Museu Dolores Olmedo. Aqui, em Xochimilco, no sul da megalópole, guarda-se a mais importante (e vasta) colecção de obras dos pintores, reunida por aquela que foi a sua grande mecenas. E assim continuamos no Museu Diego Rivera Anahuacalli, perto de Coyoacán, com um acervo de 50 mil peças pré-hispânicas que Rivera coleccionou ao longo da sua vida.
Foi uma relação tumultuosa e apaixonada, a de Frida e Diego. Sobreviveu a infidelidades, a divórcios, a problemas de saúde e impossibilidade de ter filhos. Quando Frida morreu, Diego terá dito nunca haver sido mais feliz do que quando estava com ela.


China. Chongqing



Liu Guoqiang e Xu Chaoqing









É uma espécie de conto de fadas, ainda que com ingredientes distintos dos tradicionais. Não há príncipe nem princesa, não há fada madrinha, não há palácio, não há dinheiro — mas há o indispensável “felizes para sempre”. Uma felicidade conquistada a pulso, contra o mundo. Fora do mundo.

Foi em 1951 que Liu Guoqiang e Xu Chaoqing se apaixonaram. Algo que seria normal não fora ela dez anos mais velha do que o jovem de 16 anos — além disso, era viúva e com quatro filhos. Na aldeia de Gaotan, as críticas foram intensas, a bisbilhotice e a intriga voaram à solta. Incapazes de escaparem ao escrutínio e julgamento populares, os dois jovens tomaram uma decisão radical: abandonaram a aldeia e começaram uma nova vida juntos.





Ele escavou em 50 anos 6000 escadas para viver em paz o seu amor




Em 2001, uma expedição descobriu no sudoeste de Chongqing, na China, uma série de degraus escavados na face íngreme de uma montanha. Seis mil degraus acima, os investigadores encontraram uma paixão que as rugas não esmoreceram. O casal vivia aí, numa cabana modesta, onde criaram os filhos (quatro do primeiro casamento, mais quatro que tiveram juntos no isolamento da montanha), entretanto a viver “no mundo lá fora”. A escada — uma verdadeira “escada para o paraíso” — foi o resultado do trabalho de Liu, que escavou pacientemente, ao longo de décadas, os degraus para garantir a segurança de Xu nas suas descidas à “civilização”. Isto embora ela não tenha saído muito de casa nos mais de 50 anos que viveram juntos.
Liu morreu em 2007, tinha 72 anos; Xu em 2012, tinha 87 anos. Estão sepultados juntos, na montanha onde viveram no topo da “escada do amor”(coberta por dez mil rosas brancas, oferecidas anonimamente, no dia do funeral de Xu), como ficou conhecida a história que em 2006 foi considerada uma das 10 mais românticas da China. Teve mesmo direito a filmes em cinema e na televisão, enquanto o casal ainda vivia a sua vida espartana na montanha. Por isso, em vez do descanso eterno no local onde escolheram viver o seu amor, a escada e a casa tornaram-se ponto de romaria. E agora o governo local decidiu transformar o local numa atracção turística. Os planos incluem restaurar a casa, conservar a escada e construir melhores estradas para que todos possam ir ali. Ao palco das vidas que provaram que num mundo de pragmatismo materialista, ainda há lugar para “amor e uma cabana”.

EUA. Texas e Louisiana

Bonnie & Clyde









Há algo de épico na canção que Brigitte Bardot popularizou quando ela conjura a nossa atenção: “Et bien/ Ecoutez l’histoire/ De Bonnie and Clyde”. Bonnie Parker e Clyde Barrow constituíram o casal fora-da-lei mais famoso dos anos 1930 norte-americanos. O país vivia mergulhado na Grande Depressão, a Lei Seca estava no seu estertor e o par assustava na mesma proporção que fascinava a população — durou pouco o seu reino de terror, mas a sua lenda instalou-se no imaginário colectivo. Claro que não prejudicou a atenção que a cultura popular dedicou aos seus feitos, produzindo filmes, canções, livros sobre o casal que entre 1932 e 1934 assaltou bancos e postos de gasolina, assassinou polícias e civis. Contudo, inconscientemente ou não, foram eles próprios que começaram a construir a sua iconografia, deixando para trás inúmeras fotos em poses apaixonadas, ela de boina, ele de chapéu, e com armas empunhadas.

A história é a típica boy-meets-girl: Bonnie era empregada num café em Dallas e conheceu Clyde, delinquente já condenado, em 1930. Foi amor à primeira vista, diz-se. Em poucos anos tornaram-se em inimigos públicos, deixando um rasto de crimes e cadáveres e protagonizando fugas improváveis às autoridades.
Foi na área do sudoeste dos EUA que o bando Barrow distribuiu a sua actividade criminosa e é um bom pretexto para conhecer a América mais profunda. O Texas é o seu epicentro, sobretudo em redor de Dallas, a cidade natal de ambos. Pequenas cidades como Grapevine ou Grand Prairie, Kemp ou Decatur, têm as suas memórias da dupla, mas algumas das mais tangíveis estão em Huntsville: no Texas Prison Museum exibem-se vários objectos que lhes pertenceram, como uma pistola encontrada no carro onde morreram. Esse também é objecto museológico e está nos arredores de Las Vegas.
No Louisiana, na auto-estrada 154, a sul de Gibsland, um marco assinala o local da emboscada final ao casal. Um verdadeiro blaze of glory inglório: mais de cem balas cravejaram o carro onde Bonnie e Clyde morreram, em Maio de 1934. Ambos foram sepultados em Dallas, mas em cemitérios diferentes. Bonnie deixou alguns poemas, como The Story of Bonnie and Clyde, do qual deixou uma cópia à mãe poucas semanas antes de morrer: “Some day they’ll go down together/ they’ll bury them side by side./ To few it’ll be grief,/ to the law a relief/ but it’s death for Bonnie and Clyde”.


Inglaterra



Rainha Vitória e príncipe Alberto





Adormeceu Alexandrina Vitória e acordou rainha Vitória, às seis da manhã, quando a informaram de que o tio tinha morrido. Aos 18 anos, aquela que nasceu em quinto lugar na linha de sucessão ao trono inglês tornava-se rainha de um império que ela haveria de tornar no mais poderoso e mais vasto do mundo, “onde o sol nunca se punha”. Não o fez sozinha, pelo menos não nas primeiras décadas. Aos 21 anos casou-se com o primo, Alberto de Saxe-Coburgo Gotha e, como raramente acontecia nas monarquias, o casamento orquestrado nas altas instâncias do poder foi de amor verdadeiro. Tão verdadeiro que se tornou mito.

Conta a história que ambos se conheceram no Castelo de Windsor, no mesmo apartamento onde ele morreria 24 anos depois, lançando a rainha num luto perpétuo que se tornou na sua imagem de marca — e na iconografia da era vitoriana, marcada, entre outros, pela rígida moralidade. Foi uma união total: juntos tiveram nove filhos, juntos governaram o império durante 21 anos. Ela não tomava nenhuma decisão sem o consultar, ele tratava das finanças públicas — a maior conquista pública da monarca foi ter conseguido para Alberto o título de príncipe consorte, num país que recebeu com desconfiança o príncipe alemão.
Foram os primeiros monarcas a habitarem em permanência o Palácio de Buckingham, mas Windsor tem um papel central na sua história. Como tem Balmoral, a propriedade escocesa ainda hoje refúgio da família real inglesa, comprada pelo casal que construiu um novo castelo, e Osborne House, o palácio de estilo renascentista na ilha de Wight que se estabeleceu como residência de Verão — a Victoria Beach, agora aberta ao público, recebeu muitas vezes a rainha e os seus filhos.
Depois da morte prematura de Alberto, aos 42 anos, a rainha retirou-se da vida pública durante três anos. Em sua honra, mandou erguer o Albert Memorial, junto do Royal Albert Hall, cuja construção cumpriu o desejo do príncipe de fundar um espaço de promoção das artes e ciências.
Em 1901, morre Vitória, cumprindo o mais longo reinado inglês: 64 anos, mais de 40 como viúva em luto constante. Foi sepultada no mesmo mausoléu do marido. “Farewell best beloved, here at last I shall rest with thee, with thee in Christ I shall rise again.”


Índia. Taj Mahal



Prince Khurram e Mumtaz Mahal





O monumento mais famoso da Índia é um símbolo de amor eterno e, simultaneamente, mausoléu. Quem não viu a graça imponente da silhueta de mármore branco do Taj Mahal para lá de jardins impecavelmente tratados? Esta é provavelmente uma das mais grandiosas declarações de amor de sempre, porém, poucos sabem a história por detrás desta que é uma das (novas) 7 Maravilhas do Mundo, erigida no Norte da Índia, na margem do rio Jumna, em Agra (Uttar Pradesh).

É uma história que começa como muitas outras: era uma vez um rapaz e uma rapariga que se apaixonam. Mas o rapaz era um príncipe da dinastia indiana grão-mogol, Khurram, e a rapariga uma princesa de origem persa, Arjumand. Ele tinha 15 anos, ela tinha 14 — casaram-se cinco anos depois de se terem conhecido, em 1612, e durante esse período não se viram. Com o casamento, ela recebeu um novo nome, Mumtaz Mahal, “a maravilha do palácio”; ele haveria de ser Shah Jahan, imperador mogol (descendente do imperador mongol Gengis Khan). Foi a segunda mulher do imperador, mas a sua preferida: viveram juntos 19 anos e tiveram 14 filhos. Ela morreu em 1631, ao dar à luz ao último, lançando o reino em dois anos de luto intransigente e o marido em reclusão durante um ano.
Em 1632, Shah Jahan ordenou o início da construção do memorial à sua amada, um testemunho do seu amor e a garantia de que o seu nome não se perderia na voragem dos séculos. Durante duas décadas, mais de 20 mil trabalhadores deram forma a uma sinfonia rítmica que combina “sólidos e vazios, côncavo e convexo, penumbra”, lê-se no site da UNESCO, que consagrou o Taj Mahal como Património da Humanidade em 1983, obra máxima da arquitectura indo-islâmica.
De todo este lado do mundo, chegaram os materiais mais preciosos, mármore de pedreiras próximas, safiras do Ceilão, ágatas do Iémen, jade e cristal da China, lápis-lazúli do Afeganistão, ametistas da Pérsia, quartzo dos Himalais, corais da Arábia Saudita, âmbar do oceano Índico… Juntos compõem o intricado rendilhado do edifício principal, o mausoléu, que se ergue numa plataforma marmórea, quatro faces exactamente iguais, onde sobressai um arco de 22 metros de altura, coroado de cúpulas. Minaretes erguem-se como sentinelas a flanquear o mausoléu, instalado num vasto jardim onde o complexo se completa com outros edifícios.
Deposto pelo filho, Shah Jahan esteve oito anos prisioneiro no Forte Vermelho de Agra. Daí tinha vista para o Taj Mahal. Quando morreu, foi-lhe dado descanso eterno ao lado do seu amor imortal.


Inglaterra. Yorkshire 



Heathcliff e Catherine






Amor desesperado, ciúmes desmesurados, vingança obsessiva. Não é uma história de amor tradicional, a que Heathcliff e Catherine vivem no Monte dos Vendavais. Saída da pena de Emily Brontë e publicada em 1847, é uma história que respira o ar do seu tempo, a época romântica, e que não enjeita deambulações pelo gótico, com paixão, crueldade, elementos sobrenaturais e uma atmosfera opressiva. Foi a única obra da segunda das irmãs Brontë (Emily morreria um ano depois) mas bastante para lhe dar um lugar no panteão literário — a sua influência na literatura inglesa posterior é reconhecida — e da cultura popular — o cinema e a música voltam regularmente ao Monte dos Vendavais.

Foi aí, entre natureza agreste refém de vastas charnecas, que Heathcliff e Catherine viveram o seu amor e desamor. Cresceram juntos, descobriram-se almas gémeas, mas o preconceito de classe separou-os. Ela casou-se na alta sociedade, ele foi marginalizado e enveredou por um caminho de vingança inexorável que nem a morte de Catherine diluiu. Pelo contrário, intensificou-se como um mergulho na loucura que no final tomou conta de Heathcliff e que só a morte apaziguou, devolvendo-o à sua amada. Pelo meio, um rasto de vidas destruídas e um sinal de esperança.
É impossível ler o Monte dos Vendavais separado da geografia da sua autora. E esta não é uma questão de somenos, já que muitos estudiosos vêem a geografia como mais um personagem da trama, conferindo o tom da narrativa. E essa geografia é a das charnecas desoladas do Norte de Inglaterra, no Yorkshire, numa região isolada e dura delimitada pelos montes Peninos e a “60 milhas de Liverpool”. A de Heathcliff e Catherine; a da família Brontë, que deu origem a uma espécie de roteiro literário-turístico denominado de Brontë Country, percorrendo memórias pessoais e literárias das três irmãs.
Emily nasceu em Thornton, quando o pai era aí vigário, mas grande parte da sua vida viveu-a em Haworth, pequena aldeia nos arredores de Bradford — a casa paroquial, onde a família viveu, é agora um museu. E é a partir de Haworth que se desenvolvem os passos em volta doMonte dos Vendavais – saindo da aldeia em direcção à charneca encontram-se Ponden Hall, que terá inspirado Thrushcross Grange, e Top Withen, em ruínas, o modelo para Wuthering Heights. Aí, ainda que involuntariamente, as palavras cantadas por Kate Bush ecoam com mais alma: “Heathcliff, it’s me, Cathy, I’ve come home”.


EUA. Geórgia



Scarlett O’Hara e Rhett Buttler








“Afinal, amanhã é um outro dia.” Começamos pelo final, teatral, do filme E tudo o vento levou porque, na verdade, esta é uma história de sobrevivência. De tudo, menos, talvez, do amor sempre desencontrado de Scarlett O’Hara e Rhett Buttler. E começamos pelo filme porque foi ele que se instalou no imaginário de gerações ao longo dos últimos 75 anos (a cumprir em 2014). É que se antes deE tudo o vento levou chegar ao grande ecrã como uma das maiores extravagâncias cinematográficas de sempre ele foi, é, um livro vencedor do prémio Pulitzer, ninguém consegue imaginar outra Scarlett que não Viven Leigh ou outro Rhett que não Clark Gable. Eles, ela, sobretudo, são os motores deste grande fresco sobre o sul dos EUA durante e após a Guerra Civil, que dividiu o país numa luta fratricida que colocou em confronto dois modos de vida — o agrário e esclavagista do Sul e o industrial e não esclavagista do Norte — e que ainda hoje ecoa nesse território da Dixie.

Não é um amor linear. É tudo menos altruísta, vivido por dois protagonistas egoístas e narcisistas q.b.. Scarlett é uma jovem southern belle, inconsequente e fútil, Rhett é um homem mais velho, cínico e pragmático; ela tem uma paixão não correspondida, ele apaixona-se pela sua paixão. A vida despreocupada do início do filme é abalada pela Secessão, guerra e reconstrução que põem à prova a capacidade de sobrevivência dos protagonistas e tornam (ainda mais) ínvios os caminhos deste amor turbulento que nunca é total. Quando, finalmente, Scarlett percebe que sempre amou Rhett, é tarde de mais — ele já desistiu dela.
Ela decide aí deixar Atlanta e voltar a casa, a plantação familiar, Tara, perto de Jonesboro. É aqui, no Norte da Geórgia, que se pode visitar a Stately Oaks Plantation, construída em 1839 e que terá servido de inspiração a Margaret Mitchell para a sua Tara. Ainda antes de regressarmos a Atlanta, sempre no espírito sulista antebellum e das memórias da guerra, temos mais plantações cristalizadas no tempo, cemitérios confederados e unionistas, campos de batalha, museus — o mais famoso, em Marietta, Scarlett on the Square guarda objectos e memorabilia do filme. Do livro e da sua autora guardam-se memórias na Casa Margaret Mitchell, em Atlanta. A casa-museu faz parte do Centro de História da cidade, um complexo com casas históricas recuperadas e a maior exposição de artefactos da guerra civil.
Além de Atlanta, Savannah e Charleston (Carolina do Sul) fazem parte da geografia de Rhett e Scarlett — cidades históricas, à beira-mar, preservam uma riqueza arquitectónica invulgar que reflecte uma história intensa. São duas ilusões, Scarlett e Rhett, mas um bom pretexto para descobrir um mundo que o vento levou, deixando como herança o famoso charme sulista, onde haverá sempre a chama do amor de ambos, que ardeu até à exaustão.


França. Paris



Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre






Paris é uma festa, disse-o Hemingway e continuam a dizer muitos. Mas depois da festa do escritor norte-americano — e de muitos dos seus camaradas de ofício expatriados —, Paris foi também existencialista. Na verdade, durante algumas décadas, no pré e pós II Guerra Mundial, a capital francesa foi um enorme laboratório filosófico onde se forjou o existencialismo, que teve a sua grande “festa” entre o final do conflito e o início da década de 1950. Nessa festa existencialista, um casal assumiu-se como mestre-de-cerimónias. Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, omniscientes e omnipresentes, reinaram sobre a margem esquerda do Sena e conjuraram muita da mística que ainda hoje cobre o movimento.

Foi um amor muito pouco convencional e daí todo o fascínio pelo casal tão improvável como inevitável. Em 1929, ele tinha 24 anos, ela 21, ambos fizeram provas na Sorbonne, em Filosofia, para conseguirem entrar na carreira de professores: ele, na sua segunda tentativa, ficou em primeiro, ela em segundo. Sartre era baixo, profundamente estrábico e com predilecção por roupas alguns números acima, Beauvoir personificava a elegância e o estilo. Ele gostava de beber e de longas discussões noctívagas; ela também. Apaixonaram-se. Diz-se que ele a pediu em casamento logo em 1929 e ela o recusou. Nunca casaram, nunca viveram juntos e tinham um “pacto”: podiam ter relações com terceiros, desde que contassem tudo um ao outro. Ambos usaram e abusaram desse acordo, envolvendo-se em múltiplas relações, muitas vezes dentro do seu círculo próximo, a que chamavam família.
Esta família existencialista movia-se entre Saint-Germain-des-Prés e Montaparnasse, a rive gauche parisiense. Entre muito café e mais fumo, transitavam pelos mesmos cafés em discussões intermináveis. O Café Flore e o Le Deux Magots foram o coração deste existencialismo, onde Sartre e Beauvoir recebiam os seus acólitos, cada um na sua mesa, para tertúlias sobre o nada e o tudo (sexo). Mas não foram os únicos, numa lista consistente de locais perfeitamente identificados e por estes dias insuperavelmente turísticos e caros. Porque de bairro boémio Saint Germain de Prés transformou-se em passarela de vaidades, abraçada pelo Sena, o Jardim do Luxemburgo, a torre Eiffel e o Quartier Latin.
Sartre morreu em 1980, Beauvoir seis anos depois. Estão sepultados no cemitério de Montparnasse, bairro onde Beauvoir nasceu (nunca saiu de casa), em campa simples. Existencialista, como o amor deles.

Por Andreia Marques Pereira
08.02.2014
In lifestyle.publico.pt,




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