domingo, 12 de janeiro de 2020

OXALÁ OS PÁSSAROS




OXALÁ OS PÁSSAROS

olho o lago

e o corpo da lua
esquece que já foi amarelo
deita-se devagar
sobre o que é água
sobre o que é gelo.

olho o lago

adagas prendem o meu olhar
lágrimas
pássaros e lobos.

mas este é o meu voo
é meu estre uivo
escuto as vozes:
da magrugada
do medo
do mármore.

reencontro o vazio
de ser assim
ardor e poço
mansidão e rebeldia.
dentro eu sei
o voo que afinal queria.

repito o mantra
que combate a inércia:
«amanhã é
outro dia;
hoje falta pouco
para amanhã.»

sigo a sombra lunar
deixo nuas as mãos
que acariciam os olhos
e atravessam a noite.
há música.

a harpa.
o corpo quente.

eu queria um corpo em folha
outras dores, outros fantasmas
talvez mesmo
uma outra coleção de vozes.

mas sou este
em busca da maresia
cercado entre a raiz da prosa
e o que sucede pela poesia;
este corpo ambulante
entre luar e lago
entre gelo e luz
com palavras que me cercam
e se devolvem à minha pele.
como a primeira casa.

aos fantasmas peço silêncio.
visto o espelho
perco-me de vista.
não sei voltar a ler as margens.
preparo os pés; arrumo as sandálias
levanto a âncora
está preparada a canoa.
espera-me o lago, tão
perto da lua;
espera-me a madrugada, tão
perto de mim.
grito para experimentar
a ausência do eco:
era esta a vastidão que ansiava.
dois remos.
a travessia anunciada.
este lago há-de salvar-me
por um par de horas.

olho o corpo invisível da lua.
na lágrima,
um louco a benzer faróis.

desço o poço.
tenho os pés submersos
no sal que a canoa acolhe.

queria poder regressar
a uma espécie de casa.

eu não sou o voo
que afinal seria.

retorno à margem.
é azul-bruma o fio
onde estendo palavras
que hão de evaporar.

dormem longe
os pássaros e os lobos.

o meu labirinto inacabado
faz-se de um sal que não cessa.
diluiu-se o mármore
mas voltará.

perdi a fronteira que
havia traçado
entre medo e madrugada.

estão vivos os fantasmas
aprenderam a uivar.

preparo os pés.
reinicio a caminhada.
carrego na mão a âncora
que me macera o tornozelo.

evaporaram-se as palaras.
está nu o meu estendal.

respiro. espero.

oxalá os pássaros saibam
o caminho de volta até mim.


ONDJAKI, 
in HÁ GENTE EM CASA (Caminho, 2018)



                                                Lola

Se eu pudesse trincar a terra toda




Se eu pudesse trincar a terra toda


Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz

Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...


Alberto Caeiro



                                              Lola

Lúbrica




Lúbrica


Mandaste-me dizer,

No teu bilhete ardente,

Que hás-de por mim morrer,

Morrer muito contente.

Lançaste no papel

As mais lascivas frases;

A carta era um painel

De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,

Teus dedos delicados

Traçaram do prazer

Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar

É muito mais fogoso,

Que a febre epistolar

Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval

Os olhos tão nefandos

Traduzem menos mal

Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais

Libidinosa Marta,

Teus olhos dizem mais

Que a tua própria carta.

As grandes comoções

Tu, neles, sempre espelhas;

São lúbricas paixões

As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,

Mulher, que me dissecas,

Teus olhos dizem mais,

Que muitas bibliotecas!

Cesário Verde


                                                Lola


Contigo





Contigo

"Sou eu, sou eu que não durmo,
contigo nos sentidos.

Sinto-te caminhar sobre as águas

do meu corpo - não sejas queimadura
nem boca do deserto.

Nenhum amor é estéril, um filho
pode ser uma estrela ou um verso."
.
Eugénio de Andrade, 
in "O Outro Nome da Terra"


                                               Lola

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

PASSAGEM DO ANO




PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, in ROSA DO POVO 
(1945; Companhia das Letras, 2012)


E há tantos direitos que (outrora não, mas hoje) tive: 
embriagar-me em sonho
abraçar, demoradamente, a dança
encolher, inebriadamente,  o grito
deixar livremente passear as bolas coloridas pelo chão (que é, neste tempo, dos meus gatos)
enrolar-me delicadamente em cetim de poesia 
e...porque não?
dar a mão, estendidamente,  a Kant!
Porque o tempo que é, também ele, de passagem...
 inunda docemente a vida de sentires éticos, gnoseológicos e estéticos...
E isto é um imperativo reflexivo e...
inevitavelmente existencial!





                                               Lola