UMA HISTÓRIA DE AMOR
E realmente, aos trinta e dois anos, sou velhíssimo, aposto
que a batina vermelha de menino do coro já não me serve, os calções não me
servem, de certeza que nada me serve, a menina para mim – Como é que te passou
pela cabeça que eu podia apaixonar-me e casar contigo, és tão tonto
Aos treze
anos, mais ou menos, apaixonei-me perdidamente por uma menina de onze ou doze,
que só via na igreja, eu, menino do coro, lá em cima no altar, ela com a mãe e
a tia na assistência. Levava as semanas à espera da hora da missa, a saudade
doía-me fisicamente, nunca lhe falei, nunca a vi a menos de vinte ou trinta
metros, às vezes estava um menino, primo ou isso, ao seu lado e eu consumido de
ciúmes, a sofrer como um cão, parecia-me que de vez em quando ela olhava para
mim mas não tinha a certeza, o mais provável era que não me ligasse nenhuma eu
que até perfumava com o frasco da minha mãe, eu que até tentava pentear a
franja para trás com a escova do meu pai, nunca dei pelo mais pequeno interesse
da parte dela, usava meias brancas, usava tranças, não fazia ideia do seu nome,
não fazia ideia onde morava, se calhar era casada
(há
pessoas precoces)
e passei
para aí um ano inteiro a derreter-me de amor, a pensar nela no eléctrico, no
liceu, em casa, às vezes de lágriminha a arder-me no canto do olho
(a paixão
dói para burro)
até que
ela, os pais, uma velha de dezasseis ou dezassete anos, igualzinha à mãe, já de
saltos altos, já senhora, que, sei lá porquê, essa sim, parecia olhar-me de vez
em quando, sem nenhum interesse em mim, aliás, desapareceram todos, para outra
igreja, para a Mongólia, sei lá e perdi-a definitivamente, outras pessoas
ocuparam o banco dela, velhos, senhoras de preto, meia dúzia de escuteiros,
inclusivé um ceguinho de bengala que uma velhota amparava, uma ocasião, no
Natal, até um corcunda, palavra, desses a quem apetecia passar a palma na
marreca para dar sorte
(infelizmente
nunca fui capaz de fazer isso, o que, se calhar, explica todos os meus azares)
e ainda
hoje espero que a menina, com os seus doze anos intactos, me surja de súbito numa
esquina, no supermercado, à saída do banco, me dê o braço e me acompanhe até ao
sítio onde moro, impacientando-se com a minha demora em encontrar a chave
– É para
hoje ou quê?
a bater o
bico do sapato no capacho, mirando-me, impaciente, do seu metro e trinta, com
uma pulseira de bolinhas de plástico, uma unha roída e um risco de tinta azul
na bochecha, a passear no apartamento com ar proprietário, franzindo-se de
desgosto para os meus quadros, o do gatinho a sair de uma bota e o das virgens
de túnica, aéreas, de cabelo comprido, a dançarem numa orla de bosque, com um
fauno a tocar-lhes flauta, eu que até acho este apartamento bonito, agrada-me o
candeeiro do tecto que imita uma lanterna de locomotiva e a cómoda de torcidos
e tremidos com a fotografia da Irene
(–
Coitada da Irene)
no tampo
(o que
será feito da Irene?)
acompanhada
por um soldado de barro, a quem falta metade da espingarda, a fazer
continência. A menina acabou por sentar-se no sofá de dois lugares a vasculhar
as revistas na mesinha de apoio
– Não
tens nada que se leia tu?
e
desarrumando-as todas
(uma
delas escorregou para o chão)
concluiu
com desgosto
–
Entreténs-te com porcarias
a
descruzar as pernas e a cruzá-las ao contrário, mostrando-me a crosta de uma
feridita no joelho
– Caí
ontem na banheira
enquanto
explorava o interior de uma narina com o mindinho e avaliando os resultados do
exame após várias torções de saca-rolhas e limpando a unha no veludo a
informar-me
– Visto
de perto és mais feio do que na igreja
a abrir
uma gaveta na esperança de chocolates e a pescar lá de dentro uma lâmpada
fundida
– É da
tua mesinha de cabeceira, isto?
que não
lhe cabia no bolso do casaco
– Pelo
sim pelo não vou levá-la
e acabou
por deitar fora
– Está
fundida
vendo-a
rolar em semi-círculo para debaixo do armário enquanto eu apanhava as revistas,
o prédio da frente, na janela, afigurou-se-me de súbito feio e triste, com uma
senhora de idade na varanda a pendurar fronhas num fio, toda a minha vida,
aliás, me parecia de súbito feia e triste, a começar pela Irene que sempre
coxeou um bocadinho, numa vocação de trotinete
(pobre
Irene)
a menina
espiou-me de olhos meio fechados, a avaliar
– És tão
velho
e
realmente, aos trinta e dois anos, sou velhíssimo, aposto que a batina vermelha
de menino do coro já não me serve, os calções não me servem, de certeza que
nada me serve, a menina para mim
– Como é
que te passou pela cabeça que eu podia apaixonar-me e casar contigo, és tão
tonto
eu quieto
no meio da sala, de garganta apertada, incapaz de olhá-la, incapaz de dizer fosse
o que fosse, vendo-a afastar-se de mim a caminho da porta, a desaparecer no
patamar, a descer as escadas a gritar-me, invisível, um
– Palerma
que a
sereia de uma ambulância, lá em baixo na rua, felizmente amorteceu.
António Lobo Antunes
(Crónica publicada na VISÃO 1306 de 15 de março)
Lola