quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Fonte




Fonte

VI
Estás verdadeiramente deitada. É impossível gritar sobre esse abismo
onde rolam os cálices transparentes da primavera
de há vinte e dois anos. Quando aperto as pálpebras
ou descubro o teu nome como uma paisagem,
só há grutas virgens onde os candelabros se apagam.

Mãe, pouco resta de ti na exaltação deste mundo. Às vezes
misturas-te um pouco nos terrores da noite ou olhas-me,
vertiginosa e triste,
através das palavras impuras da minha vida
de poeta.


No outro lado da mesa estás inteiramente
morta. Parece que sorris de leve no meu
pensamento, mas sei que é apenas
a solidão espantada. Como pudeste morrer assim
tão violenta e fria,
quando ainda meus dedos começavam a agarrar-te
a cabeça inclinada dentro
das luzes? Não podes levantar-te dos retratos antigos
onde procuro afogar-me como uma criança
nocturna. E não atravessaremos juntos as cidades redentoras,
perdidos um no outro, sorrindo,
como se estivéssemos debaixo de uma árvore inspirada e eterna.


Conheço algumas cidades da europa e a fantasia vagarosa
da cidade da minha infância.
Tu desapareceste. É um erro
das musas distraídas. Não há guindaste que te levante
do coração das águas,
onde apodreceste envolvida no halo do teu amor invisível,
ou recolhida na tua carne rápida, ou ainda
ligeiramente tocada pelo ardor
de uma existência pura. Conheço grandes casas
onde não habitas, flores que cheiro, tarefas
silenciosas que cumpro humildemente, e luzes,
instrumentos de música,
laranjas que devoro sentindo o gosto da vida, desde a garganta
às mais finas raízes das vísceras. Tu
desapareceste.


Imagino que seria possível tocares porventura
a minha boca. Tocares-me tão viva ou tão misteriosamente
que eu estremecesse nas trevas
da cega inspiração. Poderias estar vergada sobre os meus
ombros, até que as lágrimas
na minha boca se confundissem com a ansiosa subtileza
dos teus dedos, e eu me sentisse
perdido entre os pilares e os túneis das cidades
ressoantes.


 – Depois talvez pudesses vir com o rosto um pouco coberto de poeira,
e os olhos delicados de mulher restituída,
e os pés brilhando sobre os caminhos do meu silêncio exaltado,
– talvez
pudesses salvar-me, como uma palavra pode
salvar um pensamento, ou uma
breve música pode acordar do abismo inocente
da noite
um instrumento encerrado em suas cordas extenuadas
– e firmes.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996


                                            Lola

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…





Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…

VII

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...


Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. 
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.

                                            Lola

Nevoeiro




Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder,

Como o que o fogo-fátuo encerra.


Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora!

Fernando Pessoa


                                            Lola

A queda




A queda


E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.
Se acaso em minhas mãos fica um pedaço de oiro,

Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesoiro,
Morro à mingua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços de alma – e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra – em nada me condenso...
Agonias de luz eu viro ainda entanto.
Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
vencer às vezes é o mesmo que tombar –
e como inda sou luz, num grande retrocesso,
em raivas ideais ascendo até ao fim:
olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...


Mário de Sá-Carneiro
 in 'Dispersão' 


                                            Lola

Saí do comboio







Saí do comboio

Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.
Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.
A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...
Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.
E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.


Álvaro de Campos




                                            Lola

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Tenho Medo de Perder a Maravilha



Tenho Medo de Perder a Maravilha

Tenho medo de perder a maravilha
de teus olhos de estátua e aquele acento

que de noite me imprime em plena face 

de teu alento a solitária rosa.


Tenho pena de ser nesta ribeira
tronco sem ramos; e o que mais eu sinto
é não ter a flor, polpa, ou argila
para o gusano do meu sofrimento.

Se és o tesouro meu que oculto tenho
se és minha cruz e minha dor molhada,
se de teu senhorio sou o cão,

não me deixes perder o que ganhei
e as águas decora de teu rio
com as folhas do meu outono esquivo.

Federico García Lorca, 
in 'Poemas Esparsos'


                                            Lola

Rosas, muitas rosas para todos!



Rosas, muitas rosas para todos!



Confesso...não sou muito dada a efemérides e não fora a imprensa e alguma rede social e, para mim, passariam despercebidas algumas datas e lembranças que (a todos) ligam a memórias doces e amargas.

Há poucos dias terminou Outubro! 
Um mês de múltiplas e pessoais interpretações. Um tempo de outono que trouxe o frio e o sempre confortável desejo de aconchego à lareira. Mas Outubro, de há uns tempos para cá, não só é prenuncio de Outono como também  se coloriu de Rosa e assim se foi multiplicando a imagem, sempre ternurenta, de um OUTUBRO ROSA!


Um dia destes, no supermercado, um rosto olhou-me e sorriu! Olhei-a e notei o lenço que lhe envolvia a cabeça e adivinhei a luta daquela pessoa face ao imprevisto, indesejável e, dizemos nós...(in)dispensável grito de sobrevivência!

Não sei o nome desta MULHER....sei apenas que é mais uma a dizer eu não desisto, eu sei e quero e vou lutar por mim e por todos!
Sim, que o cancro e a luta a ele associada não tem género, credo, idade, raça, nem sequer tempo de preparação para uma luta cada vez mais, (e as descobertas cientificas trazem-nos esse conforto), envolvida de esperança esperançada.


A este propósito, ou mais exactamente por causa disto, há já alguns anos (ainda poucos, eu sei) a ADOA (Associação de Doentes Oncológicos de Arouca) constituiu-se como grupo de pessoas que colocou de lado as suas particularidades dolorosas e as suas subjectividades familiares e partilhou formas de reinventar a vida, modos de olhar o futuro que sempre será de horizontes de esperança.

Tenho estado atenta às suas iniciativas, tenho acompanhado o enorme esforço que fazem para, num verdadeiro gesto de altruísmo, compartilharem o seu sorriso de firmeza, determinação e abertura ao OUTRO o que muito nos enobrece como pessoas.

Como mãe e filha que quem já partiu com o mesmo nome de doença...como Mulher que já teve de viver de forma muito intensa o sabor amargo da SAUDADE, tiro o meu chapéu a estes seres maravilhosos que transformaram frases ditas num espaço branco de hospital em oportunidades de vida que a todos nós nos admiram, surpreendem e envolvem.

Um dia destes vou ao espaço da ADOA para passar uma tarde a rir,  sem preconceitos ou tabus, focando no lado solar da vida
Quero rever o sorriso doce da Lídia, a serenidade do olhar da Alexandra ou mesmo a atitude divertida de todas elas do qual ainda não sei o nome mas cuja existência me deslumbra!

Um dia destes vou tornar-me sócia desta associação que, em boa hora, surgiu no nosso concelho para nos fazer lembrar que a vida é tarefa conjunta e que estar acompanhada nos fortalece e empurra para a vida que tem e deve sempre ser vivida com DIGNIDADE.
Querem fazer o favor de me acompanhar? 



                                            Lola


Ou me prende ou mantenho condução de rali!


“Ou me prende ou mantenho condução de rali”!  
A PSP partilhou nas redes sociais o testemunho de um cidadão apanhado a conduzir ‘em modo rali’ em Lisboa. “Ou me prende ou sigo e na mesma condução”, afirmou Vítor Martins Romão para o polícia.
O relato em causa foi enviado por um “pai aflito”, que recebeu uma chamada do Hospital de Santa Maria: a filha estava em espera no bloco operatório, pois faltava a assinatura de um dos pais no termo de consentimento.
“Escusado será dizer que, após ligar os quatros piscas, a minha condução passou para o modo WRC [mundial de ralis], na versão pai aflito”, descreveu Vítor Martins Romão, no testemunho que enviou à PSP e foi partilhado por esta força no Facebook.
“Tenho esperança de não ter colocado em perigo os condutores que apanhei, mas talvez tenha feito por queimar pontos para duas cartas de condução”, admitiu.
Até que foi mandado encostar por “uma moto da PSP”.
“O agente, após continência, pediu-me os documentos e perguntou o porquê da marcha de urgência e do tipo de condução. Ao que respondi que tinha una filha à espera num bloco operatório do Santa Maria e que ele tinha duas opções: ou me prendia já, ou eu ia seguir e na mesma condução”, relatou o cidadão.
Vítor Martins Romão confessou que “não estava o mais sereno” e chorava de “aflição e nervoso”.
“Calmo. Sem sequer tirar o capacete, nem pegar na carteira dos documentos, [o polícia] apenas me disse: respire fundo, acalme-se o que lhe seja possível e siga-me”.
“Escoltou-me até Santa Maria”, continuou: “Em frente ao portão principal, voltou a fazer continência e seguiu. Fiquei sem palavras. Nem nome, nem cara, sequer. Apenas o senhor polícia da mota”.
“Talvez fosse isso mesmo que ele quis dizer”, concluiu este cidadão que enviou o relato da situação à PSP.
“Ele foi apenas a polícia. Foi apenas a instituição que representa. E eu e a minha filha, os cidadãos que ele jurou defender. E existem muitas formas de defender. Algumas nem vêm nos cânones, outras vêm nos cânones e são humanamente infringidas. Obrigado, senhor polícia. Jamais o esqueceremos”.
In Observador
7 de Novembro de 2018


Testemunho do cidadão Vítor Martins Romão:

"Antes de mais, a minha guerreira continua a lutar de forma brava. 24h depois da cirurgia.
Ontem, quando estava a regressar a Lisboa, vindo de uma rápida ida a Grândola, recebi uma chamada da Renata, aflitíssima, porque lhe tinham ligado do Hospital de Santa Maria a solicitar presença urgentíssima de um de nós.
Faltava assinar o termo de consentimento, para o procedimento anestésico da Margarida, e ela encontrava-se no bloco operatório em espera, para a tão urgente e vital cirurgia.
Escusado será dizer que, após ligar os 4 piscas, a minha condução passou para o modo WRC, na versão Pai Aflito.
Tenho esperança, de não ter colocado em perigo os condutores que apanhei, mas talvez  tenha feito por queimar pontos para 2 cartas de condução.
Algures na cidade, quando olhei pelo retrovisor, tinha uma moto da PSP a mandar encostar.
Assim fiz.
O agente dirigiu-se e após continência, pediu-me os documentos e perguntou o porquê da marcha de urgência e do tipo de condução.
Ao que respondi, que tinha uma filha à espera num bloco operatório de Sta. Maria, e que ele tinha 2 opções: ou me prendia já, ou eu ia seguir e na mesma condução.
Obviamente, não estava o mais sereno, e as lágrimas correram-me, num misto de aflição e nervoso.
Calmo. Sem sequer tirar o capacete, nem pegar na carteira dos documentos, que lhe estava a dar, apenas me disse: "respire fundo, acalme-se o que lhe seja possível e siga-me".
Saiu em direcção à mota e escoltou-me até Santa Maria.
Em frente ao portão principal, voltou a fazer continência e seguiu.
Fiquei sem palavras.
Nem nome, nem cara, sequer.
Apenas o senhor polícia da mota.
Talvez fosse isso mesmo que ele quis dizer. Ele foi apenas a Polícia. Foi apenas a instituição que representa. E eu e a minha filha, os cidadãos que ele jurou defender.
E existem muitas formas de defender.
Algumas nem vêm nos cânones, outras vêm nos cânones e são humanamente infringidas.
Obrigado senhor polícia, em nome, da minha familia, do meu País, que tanto precisa. Jamais o esqueceremos.

Nota:
numa sociedade que nunca será perfeita, mas que devemos sempre lutar para que seja, prefiro tolerar uma falha dos bons a ajudar os bons, do que penalizar uma falha dos bons a lutar contra os maus.
É só."

Este agente da PSP, muito provavelmente, não conhece Kant nem a sua distinção entre as esferas da Legalidade e da Moralidade, contudo nesta sua nobre atitude agiu por dever e elevou a esfera da Moralidade muito acima da da Legalidade, agindo vendo no outro um fim e não um meio!
Este agente, sem rosto mas com uma existência autêntica é o verdadeiro criador do Imperativo Categórico!

Isto passou-se no meu país!

Há dias que nos enchem a alma!


                                            Lola