sábado, 28 de fevereiro de 2015

Acordo




Primeiramente


Acordo sem o contorno do teu rosto na minha almofada, sem o teu peito liso e claro como um dia de vento, e começo a erguer a madrugada apenas com as duas mãos que me deixaste, hesitante nos gestos, porque os meus olhos partiram nos teus. 
E é assim que a noite chega, e dentro dela te procuro, encostado ao teu nome, pelas ruas álgidas onde tu não passas, a solidão aberta nos dedos como um cravo. 
Meu amor, amor de uma breve madrugada de bandeiras, arranco a tua boca da minha e desfolho-a lentamente, até que outra boca — e sempre a tua boca — comece de novo a nascer na minha boca. 
Que posso eu fazer senão escutar o coração inseguro dos pássaros, encostar a face ao rosto lunar dos bêbados e perguntar o que aconteceu.


Eugénio de Andrade, 
in 'Poesia e Prosa [1940-1980]'



Até quando a areia escorregando nas mãos de espera

 esperançada?



Lola

És linda




És linda


És linda. E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas, no teu sexo acordei a memória do universo. 
A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar.
 És linda, repito. Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio.

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'



Através do mar em circulo vejo-te cada vez mais 
serenamente moreno

e sorridentemente dialogante!

Sabes?

Es lindo... de uma beleza filosófica que fez de mim 
metade de existência!

Encontrar-te-ei inteiro no mar de serenidade em

tempo que teima em não encontrar-te 

em cada onda que não desiste da 
 espera?





                                                Lola

Construção




Construção


Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.

Chico Buarque






Também olhei para ti, naquele momento,

 como se fosse o ultimo...

E foi, até hoje...

Tenho tanta Saudade em construção!

Até quando ...

 vamos desconstruir a contramão?



(imagem: Lee Jeffries)

                                               Lola

Alegria e Felicidade





Alegria e Felicidade


Há quem confunda a alegria com a felicidade.
A alegria não se parece com a felicidade, a não ser na medida em que um mar agitado se parece com um mar plácido. A água é a mesma, apenas isso. A alegria resulta de um entorpecimento do espírito, a felicidade de uma iluminação momentânea. O álcool pode levar-nos à alegria - ou um cigarro de liamba, ou um novo amor - porque nos obscurece temporariamente a inteligência. A alegria pode, pois, ser burra. A felicidade é outra coisa. Não ri às gargalhadas. Não se anuncia com fogo de artifício. Não faz estremecer estádios.
Raras são as vezes em que nos apercebemos da felicidade no instante em que somos felizes.


José Eduardo Agualusa, 
in Barroco Tropical



Alegria momentânea e ou momentos felicitantes?

Felicidade como ideal da imaginação e não da razão!

Porque desejamos continua e continuadamente aquilo
 do qual desconhecemos a complexa definição?

A felicidade é inimiga da consciência presente?





Lola

Abraça-me




Abraça-me


Sinto o teu abraço de mar revolto
desejo-o recorrentemente
penso-o num turbilhão de ondas que rebentam em espuma brilhante

O abraço
Essa fusão de corpo que extravasa o que sinto
longe de ti, das tuas palavras serenas
 dos passos deslizando por corredores onde os meus olhos te procuram!

O abraço
preciso tanto do teu afecto doce e quente 
não de ti
das tuas explicações... das ausências...das tuas noites veladas
dos teus desejos de vida
mas, apenas preciso e

quero desmesuradamente...

o teu abraço que me afaga o tempo de espera
que não quero esquecer!

Abraço de tanta SAUDADE!

Abraça-me, numa rua de sonho... 

que me espera na noite que vai chegando!




Lola

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Gosto quando te calas







Gosto quando te calas



Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.

Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.

Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.

Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.

Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

 Pablo Neruda 





                                                Lola