BEIJO
Não quero o primeiro
beijo:
basta-me
o instante antes do
beijo.
Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.
O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.
Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser
boca.
MIA COUTO - "Tradutor
de chuvas"
“A
popularização da arte. A sua entrada no domínio público. Uma certa forma de a
virar do avesso para se saber o que há lá dentro e se expor ao sol. Qualquer
coisa assim, não sei. E neste modo de não ser em recato, a perda do sagrado, a
sua profanação. E isto acompanhado de análises críticas, de explicações, de uma
forma de lhe invadir a sua intimidade. Não se faz ainda amor em público.
Na arte já se faz. Virá também daí a sua dissolução? O artista ainda se isola
para se cumprir. Mas é quase uma formalidade imediatamente desfeita na sua
popularização. Não. Não é isso. Não se trata de que o grande público seja
excluído do acesso à arte, que para isso é que existem, por exemplo, os
museus. Trata-se de ela ser exposta ao sol, de ela ser uma mercadoria
como o papel higiénico, de se falar de arte pública como de uma mulher
pública. Trata-se de lhe destruir o que há nela de sublimidade e recato e
discrição e mistério. Trata-se de a neutralizar, de a obrigar a praticar o
nudismo. Ou uma coisa assim”.
Vergílio
Ferreira, Pensar