A Menina do Vestido Azul
Era uma vez um menino. Rebelde como muitos
outros. Chamava-se Sortudo. Criança com traços de personalidade de cores
intensas e variadas, num tecido frágil e emotivo.
Nasceu e vivia numa terra muito distante,
chamada Sorte. Era uma terra longínqua, onde só poucas pessoas conseguem
chegar. Situada num lugar ínfimo, para além da realidade.
Era a terra das oportunidades. Nessa terra, tudo acontecia sempre para o lado fácil.
Facilidades e mais facilidades. As pessoas queriam, pediam e tinham o que
desejavam.
Era a terra do positivo.
Os seus habitantes não precisavam de se esforçar
muito para que as coisas boas acontecessem. Aliás, não se esforçavam nada.
Aconteciam simplesmente os desejos. Queriam um bolo e, num instante a seguir,
aparecia uma pessoa a dar-lhe um bolo. Pensavam numa bicicleta e instantes
depois, apareciam pessoas a dar-lhes uma bicicleta Pensavam num sorriso e
rapidamente apareciam várias pessoas a dar-lhe um sorriso.
O menino Sortudo vivia numa família chamada Facilidade.
Os pais eram maravilhosos. Os irmãos adoráveis e a restante família era
igualmente amorosa. Tudo parecia bom. Tudo parecia correr ás mil maravilhas.
E tudo, diziam, acontecia por causa do Sol. O Sol
ali brilhava com imenso fulgor e intensidade. O Sol era a alegria. O Sol
aquecia e alegrava. Era o Sol que fazia com que as pessoas rejubilassem de
satisfação e felicidade .
Mas o Sol era enganador e simulado! As pessoas
tinham a sorte das coisas boas acontecerem facilmente. Sem esforço. Não
precisavam de ser determinadas. Não precisavam de se esforçar para conseguir as
coisas. Não tinham necessidade de ter força de vontade, motivação ou
persistência.
Não trabalhavam. Tudo era conseguido com....apenas
sorte! Por isso, a terra se chamava Sorte.
Mas, a pouco e pouco, as pessoas aperceberam-se que
tinham quase tudo, excepto a felicidade. As pessoas estavam numa espécie de
torpor. Um torpor de ilusão. Estavam iludidas pelo prazer fácil, pelas boas e
agradáveis sensações, pelo momentâneo, pelo esporádico.
Estavam iludidas pelo Ter e esqueceram-se do Ser.
As pessoas tinham hipotecado a felicidade em troca do Ter. Tinham tudo, excepto
a felicidade. Não eram felizes. Viviam só para o exterior, esquecendo-se de
construir o interior.
E lá no fundo percebiam que lhes faltava algo mais.ar! Faltava-lhes o factor mais importante para vencer na vida: caminhar !Elas não
caminhavam. Estavam imobilizadas pelo egoísmo e pela superficialidade. Estavam
imobilizadas pelo egocentrismo. Viviam para elas próprias. Sentiam o prazer só
para elas. Nunca pensavam nos outros, nem em fazer o bem ao próximo.
Esqueceram-se da solidariedade. Esqueceram-se de viver com os outros e para os
outros.
E, a pouco e pouco, perceberam que afinal aquilo
que sentiam era apenas....um vazio! Um vazio existencial enorme.
Era atracção, era prazer enganador, era uma
felicidade que se esfumava no instante a seguir.
As pessoas daquela terra nunca tinham percebido que
aquilo não era felicidade. Nem sequer sabiam o que era a felicidade. Portanto,
nem sequer sabiam que a felicidade era diferente: era permanente. A felicidade
era um estado de iluminação, de plenitude. Era uma luz imensa que aquecia o
coração e irradiava a luz do amor para os outros.
Até que um dia chegou àquela terra um velhinho. O
velhinho chamava-se Azarado. Andava de terra em terra, à procura de sorte,
coisa que nunca encontrou. A vida tinha sido sempre muito triste para ele.
Nunca conseguia o que desejava. Nunca conseguia obter coisas boas. Tudo o que
fazia era sempre errado. Sentia uma tristeza enorme por sempre ter ouvido falar
na Sorte e nunca a ter encontrado. Acabava sempre por nunca ter o que desejava.
Mas não desistia facilmente.
E, por fim, após ter atravessado vales e montanhas,
após ter quase desesperado por não a ter conseguir encontrar, chegou a uma
placa de localidade, que se chamava.... Sorte.
Nesse instante, pensou que encontraria o objectivo
da sua vida. Algo que tanto ambicionava, mas nunca tinha encontrado: o Ter.
Ele
possuía o Ser, mas não tinha o Ter. Mas queria Ter. Queria ser rico. Queria ter
muitos carros, muitas casas, muitos bens materiais.
Ao chegar à terra da Sorte, encontrou o menino
Sortudo. Olharam um para o outro, e ficaram a olhar e a pensar....Tão
diferentes e tão iguais.
Nesse mesmo instante, o Sol radioso, o tal da alegria
enganadora, esmoreceu e tremeu. E a luz que emanava perdeu intensidade.
Nesse instante, quando o Sr. Azarado encontrou o
menino Sortudo, algo de especial aconteceu. A bondade e a generosidade
apareceram na face do menino Sortudo. Mas o Sol não gostou. O Sol da Sociedade
não gostava de actos de solidariedade.
O velhinho olhou para o menino e pediu:
Ofereça alguma coisa a um pobre homem, que é
azarado.
O menino, que era muito rico, olhou para o velhinho
e disse:
Ofereço-lhe o castelo das oportunidades. Tem a
oportunidade de mudar, mas para isso acontecer vai depender só de si.
O velhinho ficou tão feliz com aquela oferta, que
pegou em três saquinhos que trazia e entregou-os ao menino, com carinho:
Ofereço-te estes três saquinhos. Dentro deles está
o ingrediente básico para a construção da ponte da felicidade.
O menino, intrigado, agradeceu os saquinhos e
partiu.
Então a terra da Sorte transformou-se. E as
facilidades, a pouco e pouco, desapareceram. E os desejos não mais se
concretizaram.
Agora, quando as pessoas queriam algo, precisavam
de se esforçar.
E tudo aconteceu quando o menino Sortudo olhou para
o Sr Azarado. Nesse instante o menino, pela primeira vez, sentiu a
solidariedade e quis ajudar o velhinho.
A solidariedade transformou a Terra da
facilidade.
O velhinho tentou, tentou, mas não conseguiu
realizar o desejo. Percebeu então que não conseguia realizar o desejo antigo. O
Sol radioso e enganador só servia para o eu próprio. Não servia para ajudar os
outros. A solidariedade não existia. A generosidade não existia. A ajuda aos
outros não existia
O Sol radioso afinal era uma hipocrisia. E partiu,
para nunca mais voltar.
E o menino Sortudo percebeu então que a felicidade
nunca poderia ser alcançada com o egoísmo.
A superficialidade de sentimentos apenas dava às
pessoas um prazer momentâneo, que se desvanecia rapidamente.
O menino Sortudo percebeu que a sua existência não
se podia resumir só aquilo. Queria mais! Quis perceber porque razão existia!
Quis encontrar a felicidade!
Alguém lhe disse então que existia, muito longe, a
casa da felicidade.
E um dia partiu! Deixou a terra da Sorte e partiu à
procura dessa ilha.
Levou consigo pouco mais do que os três saquinhos,
que o velhinho lhe tinha oferecido.
Andou, andou....correu mundo!
A dada altura encontrou-se no deserto. O deserto da
vida. Triste, desanimado e com sede. Sem esperança de qualquer coisa, resolveu
então abrir um dos saquinhos. E radiante ficou, quando se apercebeu que lá
dentro estava água.
Saciou a sede e recuperou forças. Agora sabia que
conseguiria atravessar o deserto.
E recomeçou a caminhada...
Continuou, continuou...........
Encontrou então a terra do fogo. Era uma terra
imensa, devastada pelo fogo. Cinzas. Destruição. Tudo a preto e branco.
Tristeza enorme nas pessoas. Não havia sorrisos. Tristeza enorme até na
paisagem.
Cansado, sentou-se numa pedra e olhou para a
paisagem destruída. Depois olhou para baixo e viu outro dos saquinhos. Abriu-o,
e surpresa das surpresas, estava cheio de cores. Cores variadas e alegres. E
então pintou todo o cenário. E pôde contemplar o regresso da alegria aquelas
paragens.
Iniciou novamente a caminhada...
Encontrou a terra da escuridão. Uma escuridão
imensa. As pessoas chocavam umas nas outras. Nem se conheciam. Tudo era triste.
O menino levou a mão ao último saquinho e
apercebeu-se, para alegria de todos que o rodeavam, que lá dentro estava uma
luz. Naquela terra as pessoas voltaram novamente a sorrir. E puderam então
conhecer-se umas às outras.
Feliz e satisfeito pelas acções que efectuou
iniciou nova caminhada, na certeza de que, a partir de agora, estaria então em
condições de empreender a viagem final, que era o caminho da transformação
interior.
Andou, andou......
Até que encontrou uma multidão desesperada junto a
um rio.
Soube então que eram pessoas como ele, à procura da
casa F de felicidade.
Soube também que estavam junto ao rio dos defeitos.
E que poucas eram as pessoas que atingiam essa mesma casa F de felicidade.
Viu então, num alto duma árvore, na margem do rio
dos defeitos, um senhor alto, o guardião do rio dos defeitos, a anunciar as
regras para se entrar na casa F da felicidade.
Para que tal acontecesse era necessário:
primeiro, deitar os defeitos ao rio
segundo, trabalharmos o interior
terceiro, entrar primeiro na casa do amor e da
bondade .
Era o único acesso possível para a casa F de
felicidade.
A casa F de felicidade está na ilha da felicidade,
ao lado da casa do amor e da casa da bondade.
A ponte só é visível para as pessoas que limarem os
defeitos e aprenderem a cultivar as virtudes. Tem quatro pilares que são: os
pilares da humildade, da tolerância, da honestidade e da generosidade.
Mas antes, é necessário eliminar primeiro os cinco
defeitos básicos do ser humano, e deita-los para o rio dos defeitos e que são:
a arrogância, o orgulho, a teimosia e a mentira e vaidade.
E, umas após outras, o guardião ia repetindo sempre
os critérios para que as pessoas pudessem entrar na casa F de felicidade.
O menino ouviu aquilo e sentiu, como tantos outros,
a tarefa impossível. Não acreditou que pudesse mudar a sua maneira de ser.
Desanimado, voltou para a casa, para a terra da
Sorte. Desistiu. Como é fácil desistir. Como é fácil encolher os ombros. Quis
partir. Quis voltar as costas ao destino. E voltou. Para casa, para a vivência
conformista, para a apatia. Como muitos outros, pensou que não encontraria a
casa F de Felicidade. Nem sequer tentou. Teve medo. Não teve coragem de tentar.
E voltou. Para casa. Como muitos outros. Quase todos os outros.
Apenas olhou para o horizonte. Apenas sentiu o
limite. Apenas olhou para o sonho. Sim, era um sonho. Olhar para o sonho. Como
é belo, como é doce. É não sentir o tempo, é não sentir a vida. Olhou para o
sonho e sonhou. Mas, mesmo assim, partiu. Partiu, mas....para a terra da Sorte,
onde tudo era real, onde não havia espaço para sonhar. Mas que dizer? Era a
vida a palpitar. È mais fácil sonhar, do que viver. È mais fácil não sonhar.
E
partiu...
No caminho, encontrou uma quinta. A quinta da
família Verdade. À sua volta estava uma muralha alta e imensa. Apenas uma muralha.
Uma muralha densa.
Sentiu curiosidade e espreitou ao portão. Uma
pequena abertura e inúmeros jovens a tentar espreitar.
Por fim, conseguiu espreitar. Vislumbrou então, no
interior da muralha, a presença de uma jovem a passear por entre as flores. Vestia
um vestido azul, da cor do céu. Era linda e morena.
O menino ficou encantado. Era uma visão fascinante.
A beleza em forma de azul. A menina do vestido azul. Beleza imensa. O arco-íris
da beleza exterior e interior. Os olhos de amor do menino conseguiram ver uma
imensa beleza interior no coração da menina do vestido azul. Beleza
deslumbrante e humilde. A forma como acariciava os animais que a circundavam. A
doçura dos gestos. A atitude meiguinha com que se relacionava com as pessoas
dentro das muralhas. E, sobretudo, a beleza do seu sorriso. Um sorriso aberto
de amor.
Conseguiu ainda ver uns olhos escuros e meigos,
detrás de um olhar deslumbrante.
A menina do vestido azul.
A menina que encantou o coração do menino Sortudo.
Perguntou então aos outros jovens quem era aquela
morena linda.
Logo lhe disseram:
É a menina do vestido azul. A menina verdade! Mas
ninguém consegue entrar. Estas muralhas são impenetráveis. São as muralhas da
falsidade. Têm um detector de falsidade. E a chave para o portão ninguém a consegue
encontrar. É uma papoila azul. Ninguém sabe onde a encontrar. Muitos tentaram.
Mas ninguém a consegue encontrar.
Disse então para ele próprio:
Eu vou conseguir! Sei que vou conseguir!
E partiu.
Correu mundo...
Um dia, cansado de tanto procurar, sentou-se junto
a um campo de papoilas vermelhas. Eram imensas. As papoilas da paixão.
Sentou-se e fechou os olhos.
Sentiu o Sol forte a iluminar-lhe o rosto. Ouviu
então uma voz ao longe:
Procura bem no centro do campo das papoilas
vermelhas. No centro da paixão está uma papoila azul. É única. Só quem
desenvolveu o amor profundo e verdadeiro a consegue ver.
Abriu os olhos, sobressaltado!
Não viu ninguém. Apenas uma ave a voar e a
cantarolar, que por ele tinha passado.
Correu para o centro do campo de papoilas vermelhas
e lá estava...a papoila azul.
Colheu-a e, correu, correu....até ao portão da
quinta da família Verdade.
Abriu o portão e, de súbito, apareceu diante dele a
menina do vestido azul. Linda. Morena. Beleza imensa.
A Princesinha do vestido azul . Olhos nos olhos.
Coração a bater apressadamente. A menina do vestido azul apaixonou-se por ele
também ao primeiro olhar. O tal grande amor que tanta gente aspira e sonha
encontrar. O tal preâmbulo do paraíso que poucos encontram. Passaram dias
encantados. Viveram a sensação, a emoção. Como se deliciaram com a vida, como
quiseram viver o....Sonho. E como o viveram... Até que um dia a donzela,
chamada Verdade, lhe mostrou um tesouro que guardava religiosamente: era uma
caixa.A caixa do amor. Abriram os dois a caixa. Receosos, como todas as
pessoas. Cativados, como muitos outros.
Abriram...e encontraram os seus corações a
palpitar, a dançar no palco da vida. Ouviram o sonho das aves, sentiram o vento
da bondade a aquecê-los com carinho. E viram o mar da acalmia, da
tranqüilidade, a baloiçá-los. Tudo salpicado com amor, tudo envolvido em amor.
Um dia casaram. Dia, após dia, anos após anos, o
Sr. Sortudo, tentou sempre melhorar como ser humano. Em cada dia que passava,
tentava limar sempre um pouco as arestas dos defeitos. E trabalhava igualmente
os pilares das virtudes, sem estar preocupado com a casa F de Felicidade.
Aliás, nunca mais se lembrou, nem se preocupou com ela. Não sonhava com ela.
Não estava obcecado com ela.
Apenas vivia o momento presente, apenas vivia.
E vivia...com amor. Conheceu a palavra, conheceu o
conteúdo. Conheceu a capacidade de amar. Não só a ele próprio, mas, e
sobretudo, aos outros. Aprendeu a sentir a importância de ajudar os outros.
Aprendeu a importância do dar. Dar sem se preocupar com o receber. Dar pelo
prazer de dar. E como foi bom aprender a dar e sentir o amor.
Um dia, sem que fizesse nada no sentido de isso
acontecesse, surgiu, inesperadamente, à sua frente, uma ponte.
Olhou, estupefacto, mas.......não podia crer nos
seus olhos. Era a ponte da Felicidade. Estava ali, defronte dele...aos seus
pés. Receoso, andou, pé ante pé. Percorreu a ponte. Observou os pilares das
virtudes. Estavam completos. Estavam perfeitos. Que milagre teria acontecido. O
que lhe teria acontecido.
Olhou admirado para o rio dos Defeitos.
Viu os defeitos a serem levados pela corrente da
vida. Ou melhor, a própria vida a levá-los para o mar da maldade.
Percorreu a ponte das virtudes e chegou junto à
porta da casa F de Felicidade.
Que linda! Que sensação tão boa!
Percebeu então que o segredo estava na caixa do
amor.
A caixa do amor mostrou.lhe o caminho. O caminho
deveria ter sempre como acompanhantes a bondade e o amor. O amor era o motor, o
engenheiro da construção da ponte das virtudes.
E, contrariamente, ao que as pessoas pensavam, a
casa F de Felicidade estava em qualquer lado. E surgia em qualquer momento. Não
quando as pessoas a procuram, mas quando a ponte está completa. Quando a ponte
das virtudes está completa, encontramos o caminho e, nessa altura, conseguimos
entrar na casa F da Felicidade.
O senhor Sortudo entrou na casa F da Felicidade.
Conseguiu entrar. E nessa altura percebeu então a razão da vida, o objectivo da
nossa existência. Em qualquer lugar, em qualquer momento, temos a oportunidade
de viver o Sonho, de sermos felizes.
E ainda hoje, se diz que anda pelo Mundo, o senhor
Sortudo, a tentar ensinar as pessoas a entrar na casa F de Felicidade. Ainda
hoje se diz que, quando alguém pratica o bem, lá está ele a incentivar a
continuação da obra.....porque a entrada na casa da Felicidade é possível. Ele
existe. Só temos que construir a ponte.
Poucos conseguem, porque a maioria desiste de
tentar, mas os que entraram na casa F de Felicidade, nunca mais quiseram
regressar ao outro Mundo, ao mundo da superficialidade, ao mundo do egoísmo, ao
mundo sem Felicidade.
Antonio
Ramalho
Lola