O Mar
Mandaram fechar a marginal. A estrada cobriu-se de areia que sobrava no ar
da rebentação. O ruído ensurdecedor parecia um modo de resmungar. O protesto
enraivecido como se o mar tivesse razões para odiar a terra. Como se tivesse
razões para nos odiar.
Quando era miúdo, uma das graças de ir à escola era passar pelo antigo
farol que fica agora ali escondido entre os prédios. Os mais velhos, na altura,
ainda se lembravam de aquilo ficar à vista dos barcos. Lembravam-se de as
Caxinas serem apenas dunas e de aquele farol funcionar, porque a água vinha bem
mais acima. Comentávamos divertidos o incrível que era termos mais de trezentos
metros de casas depois do farol. As casas mais à vista dos barcos do que aquela
construção escondida. Como se as pessoas estivessem de peito cheio contra a
rebentação. Como se quisessem elas ser a resistência toda da terra contra a
água. Havia sempre quem dizia que deus, diabo, o planeta ou os americanos,
iriam arranjar modo de voltar a reclamar as dunas.
Falou-se disso por estes dias. Os pescadores comentavam que viria um
tsunami para pôr tudo como era antigamente. Uma senhora repetia para si mesma
que não tinha culpa de nada. Gostava de lhe ter perguntado porque se afligia
com a culpa. Mas ela chorava, enrolada nos xailes, e olhava para diante igual a
ver alguém que a acusasse. Os pescadores disseram-me que sempre souberam que
isto aconteceria. As Caxinas, afirmavam, como lugar feito para desaparecer.
Fui até ao pé da Igreja de Nosso Senhor dos Navegantes que, em forma de
barco, parecia capaz de partir, capaz de naufragar. Juntou-se por ali uma
quantidade de gente. Algumas mulheres a obrigar os miúdos a voltarem para casa,
que queriam ver. A marginal, bem mais alta, e o pequeno muro de pedra conferiam
alguma segurança. As mulheres nem explicavam. Levavam os putos aos safanões,
porque o respeito tinha de ser maior do que a curiosidade. Depois, a senhora da
culpa aproxima-se novamente. Percorrera o mesmo percurso que fizera eu e
assomava à igreja para perguntar se ali não estavam a rolar os pedregulhos que
escoram a marginal. Disse-lhe que não. Ela respondeu que estávamos a pagar por
tudo.
A senhora achava que íamos pagar a gula e o adultério, o orgulho e a preguiça, a avareza, a má criação, a falta de higiene e a pouca cultura. Achava que pagaríamos tudo de uma vez, como deitados ao lixo por não termos dignidade que se aproveite. Procurei fazer com que se acalmasse. Um homem gritou que fugíssemos. O mar vinha aí. Corremos rua acima a ver se nos protegíamos. Algumas pessoas molharam-se. Era a nuvem de água que se dissipava pelo vento. Fomos outra vez ao muro. Via-se o mar logo ali.
A senhora achava que íamos pagar a gula e o adultério, o orgulho e a preguiça, a avareza, a má criação, a falta de higiene e a pouca cultura. Achava que pagaríamos tudo de uma vez, como deitados ao lixo por não termos dignidade que se aproveite. Procurei fazer com que se acalmasse. Um homem gritou que fugíssemos. O mar vinha aí. Corremos rua acima a ver se nos protegíamos. Algumas pessoas molharam-se. Era a nuvem de água que se dissipava pelo vento. Fomos outra vez ao muro. Via-se o mar logo ali.
Prometi a um senhor escrever sobre aquilo. Pediu-me que não dissesse que
tinham medo, porque não era medo, era só uma tristeza que deus, o diabo, o
planeta ou os americanos estivessem a ameaçar reclamar as Caxinas de volta.
Você não escreva que temos medo, porque isso não é verdade, insistia ele. A
gente já viu de tudo, e também já perdemos de tudo, se formos com a água vai
ser porque é a nossa vez. Como se morrer na nossa vez não fosse nada mais do
que a justiça. A justiça não devia causar medo.
Subi as ruas ainda com algumas crianças enxotadas para casa. Comentavam o
mesmo que eu nas suas idades. Que estava um farol entre os prédios lá para
cima, à beira das escolas. Queriam saber, no fundo, como se podiam ter
construído casas entre um farol e o mar. Uma das senhoras que levava o seu
filho, sem abrandar nem pensar muito, prometeu ao filho que, se ele voltasse a
dizer que íamos morrer, levava no focinho.
VALTER HUGO MÃE
Publico, 12 de Janeiro de 2014
Lola