quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

PASSAGEM DO ANO




PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, in ROSA DO POVO 
(1945; Companhia das Letras, 2012)


E há tantos direitos que (outrora não, mas hoje) tive: 
embriagar-me em sonho
abraçar, demoradamente, a dança
encolher, inebriadamente,  o grito
deixar livremente passear as bolas coloridas pelo chão (que é, neste tempo, dos meus gatos)
enrolar-me delicadamente em cetim de poesia 
e...porque não?
dar a mão, estendidamente,  a Kant!
Porque o tempo que é, também ele, de passagem...
 inunda docemente a vida de sentires éticos, gnoseológicos e estéticos...
E isto é um imperativo reflexivo e...
inevitavelmente existencial!





                                               Lola