Pedro
Não falava
mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito raramente mostrava o que sentia e,
apesar do seu silêncio imperturbável, percebia-se que gostava de nós, sem
palavras, sem pieguices, sem exibir emoções. Não se queixava de nada conforme,
aparentemente, não se zangava com quase nada
Hoje, catorze de novembro, é o dia dos
anos do meu irmão Pedro, uma das pessoas que mais amei no mundo, o único de nós
que saiu moreno, de cabelo preto, quase sempre calado. Nunca invejou ninguém:
era livre. Nunca disse mal de ninguém: era livre. Nunca discutiu com ninguém:
era livre. Fez sempre, desde criança, o que quis: era livre. Não lhe
interessava o dinheiro, nem o sucesso, nem o aplauso dos outros. Não criticava
fosse quem fosse. Não falava mal de ninguém. Misterioso, secreto, muito
raramente mostrava o que sentia e, apesar do seu silêncio imperturbável,
percebia-se que gostava de nós, sem palavras, sem pieguices, sem exibir
emoções. Não se queixava de nada conforme, aparentemente, não se zangava com
quase nada. A pouco e pouco os pais foram-se apercebendo que não valia a pena
enervarem-se com ele. Não lhes respondia que não, concordava sempre.
– Sim, mãe, sim pai
mas apenas fazia o que lhe dava na gana,
sem argumentar.
– Isto não é hotel, Pedro
– Sim, mãe
– O jantar é às oito e meia, Pedro
– Sim, mãe
telefonava a dizer que chegava mais tarde,
a mãe
– Mas onde é que tu estás, Pedro?
– Do outro lado da linha, mãe
e como é que se lhe podia ralhar depois
disto? Aliás era inútil ralhar--lhe porque ele não protestava. No fim da
descompostura concordava sempre
– Sim, mãe
numa serenidade amável que impedia
exaltações e castigos. Uma ocasião fiz-lhe uma coisa horrível: tinha pedido que
fosse lá abaixo à mercearia comprar-me papel para escrever, eu com catorze anos
e ele com onze, respondeu-me tranquilamente sentado no tapete, a brincar com
não sei quê
– Não vou
calmíssimo
– Não vou
eu ameacei, com medo que, indo eu à
mercearia, se me acabasse a inspiração
– Se não vais digo ao pai que tu fumas
o Pedro nem se
deu à perda de tempo de falar, indiferente àquela maldade estúpida
(o que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo
(o que eu continuo a arrepender-me dessa sacanice)
ameacei-o de novo
– Se não vais digo ao pai que tu fumas
ele continuou a brincar, completamente nas
tintas, tive de ir buscar o papel e a inspiração acabou-se de facto, à hora de
jantar o pai sentou-se à cabeceira, eu, furioso com a morte de uma obra prima,
interrompi o silêncio da sopa
– Pai o Pedro fuma
o silêncio, se possível, aumentou ainda
mais, à medida que eu começava a torcer-me de remorsos
(fui um cabrão)
enquanto o pai para ele, na esperança que
o Pedro negasse
– Tu fumas, Pedro?
novo silêncio enquanto eu com ganas de me
enforcar no candeeiro do tecto(nunca na vida fui
tão cabrão)
no silêncio a voz do pai a insistir
– Tu fumas, Pedro?
esperando que o Pedro negasse, pedindo a
Deus que o Pedro negasse, o pai que odiava a mentira, suplicando que o Pedro
negasse, o Pedro na tranquilidade de sempre
– Fumo, pai
mais silêncio durante o qual o pai me
olhou com ódio, o pai de novo, num suspiro
– Tu fumas, Pedro?
o Pedro na mesma paz inalterável
– Fumo, pai
um silêncio ainda mais comprido, que eu
devia ter aproveitado para me suicidar, o pai num suspiro
– Poisa a colher no prato e espera-me lá
em cima
o Pedro, na paz do Senhor, poisou a colher
e subiu as escadas, o pai levantou-se vertendo um olhar suspenso na minha
direção enquanto atirava o guardanapo para a toalha, voltou passados minutos a
detestar-me, o Pedro não voltou, no fim do jantar mais horrível da minha vida
levantámo--nos cada um para seu lado, a porta do quarto do Pedro estava
fechada, encontrei-o na manhã seguinte antes de sairmos para o liceu, ele
falou-me como se nada tivesse acontecido, o pai demorou dias sem olhar para
mim, eu demorei dias sem conversar com ninguém, feito em merda pela minha filha
da putice e o Pedro seguia igual. Não sei se me perdoou: sei que esqueceu, e
continuou a amar-me muito, conforme eu o amava muito a ele. Que eu soubesse não
odiava ninguém: era um miúdo livre. Quando morreu saí do quarto dele no
hospital porque o meu irmão Nuno me trouxe abraçado a dizer-me
– Anda bebé, anda meu bebé
de maneira que além de filho dos meus pais
nesse dia fui filho do Nuno. E gostei. Manos queridos. A maior manifestação de
amor entre nós era fazermos chichi juntos, à noite, para a cascata. Agora mijo
sozinho. Infelizmente.
António Lobo Antunes
(Crónica publicada na VISÃO
Lola