quarta-feira, 14 de março de 2018

Poema do gato




POEMA DO GATO



Quem há-de abrir a porta ao gato 
quando eu morrer? 

Sempre que pode 
foge prá rua, 
cheira o passeio 
e volta pra trás, 
mas ao defrontar-se com a porta fechada 
(pobre do gato!) 
mia com raiva 
desesperada. 
Deixo-o sofrer 
que o sofrimento tem sua paga, 
e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre pra mim 
como acorre a mulher aos braços do amante. 
Pego-lhe ao colo e acaricio-o 
num gesto lento, 
vagarosamente, 
do alto da cabeça até ao fim da cauda. 
Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos, 
olhos semi-cerrados, em êxtase, 
ronronando. 

Repito a festa, 
vagarosamente. 
do alto da cabeça até ao fim da cauda. 
Ele aperta as maxilas, 
cerra os olhos, 
abre as narinas. 
e rosna. 
Rosna, deliquescente, 
abraça-me 
e adormece. 

Eu não tenho gato, mas se o tivesse 
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?


ANTÓNIO GEDEÃO, in NOVOS POEMAS PÓSTUMOS
 (Edições João Sá da Costa, 1990)






                                            Lola