segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Finitude


Finitude


Pedagogia da Finitude


Entrevista con Joan Carles Mèlich

Educar é retirar-se, abrir tempo e espaço para que o outro possa chegar e existir!




Joan – Carles Mélich (Barcelona, 1961), o entrevistado desse número, é doutor em ciências da educação e professor de filosofia e antropologia da educação na Universidade Autônoma de Barcelona. É autor de inúmeros livros em castellano e em catalão. 

A entrevista estará dividida em três blocos temáticos: 
I – Educação como acontecimento ético 
II – Pedagogia da Finitude 
III – Pedagogia poética  

É impossível resistir ao desejo de transportar o leitor para o cenário que acolheu o encontro no qual se deu essa entrevista. Estávamos na Praça do sol, numa manhã de primavera. O céu azul abrigava o vôo branco e cinza das pombas que desciam à terra para comer migalhas de pão nas mãos das crianças pequenas e seus avós. Depois de tantos meses de frio e céu cinza, alguns jovens não resistiram a tomar uma cerveja e cabular as aulas nas escolas. Tudo estaria muito tranquilo, se não fossem outros elementos do contexto que somente agora entrarão na descrição dessa cena. Era um dos dias do Encontro dos Líderes da União Européia e Barcelona parecia uma cidade em estado de sítio. Todos os tipos de polícia com suas metralhadoras e demais armas dividiam as ruas com os cidadãos comuns. Helicópteros ruidosos com seus focos de luz circulavam sobre a cidade dia e noite. No Porto, o clima era de guerra, todos a postos para qualquer tipo de ataque. Na região da cidade onde se concentravam os representantes do poder europeu foi possível ver inclusive tanques de guerra nas ruas. Cada esquina do centro da cidade tinha como mínimo 3 ou 4 carros cheios de policiais com seus coletes a prova de bala e sua posição de “sentido!”. Qualquer transeunte tinha que mostrar seus documentos, mas... principalmente os estrangeiros. “Medidas de segurança!” – pronunciava o discurso oficial.
Antes de chegarmos à Praça do Sol e ver a cena paradisíaca descrita no início desse texto, estávamos em outra praça na qual está um edifício do governo municipal. Diante desse edifício chegou um grupo de aproximadamente treze jovens entre quinze e dezesseis anos. Eles distribuíam um papel com um texto escrito por eles que continha um discurso anti – globalização. Os “meninos e meninas” iniciavam-se em seu exercício cidadão de ocupar as praças públicas e pronunciar um dos discursos possíveis numa sociedade pluralista e democrática. Em poucos minutos, esses “meninos e meninas” estavam rodeados de um grupo de policiais como aqueles já descritos anteriormente. A cena era chocante: um grupo de meninos ainda de calças curtas rodeados da força repressora da sociedade que lhes dizia que não! Que não podiam colocar voz nas suas idéias, que não podiam ir a uma praça, que não podiam entregar seu papel caseiramente digitado aos representantes do governo. E por que tanto? A polícia se justificava: - podemos ter algum terrorista infiltrado entre eles...
Menos mal que nosso entrevistado estudou campos de concentração e traçou sua concepção pedagógica pedindo a todos que não se esqueçam dos horrores que o humano pode cometer...
Assim que, caro leitor, sabedores do cenário de fundo, vamos ao primeiro plano da entrevista. E que tudo isso nos sirva de lição para manter viva essa memória, ao mesmo tempo em que cultivamos a esperança de uma humanidade melhor.

I - Educação como acontecimento ético

CREARMUNDOS: O senhor poderia nos explicar o que significa dizer que a educação é um acontecimento ético? 
MÈLICH: Uma relação educativa é um encontro entre duas pessoas concretas, com nome e sobrenome, que se encontram cara a cara: falam, se escutam, se ajudam. Como encontros podem ser de distintos tipos, como saber o que distingue uma relação educativa de outros tipos de relação? O que caracteriza a educação?
Minha resposta é: o que faz com que a educação seja educação é a ética. Não digo que é somente ela, obviamente existem outros elementos que a constituem. O que afirmo, é que a ética está sempre presente na relação educativa. Sem ética não há educação, há apenas domesticação de cérebros. E, sem ética, não há maneiras de distinguir relações totalitaristas das demais. É a ética que baliza e dá parâmetros para que uma relação  possa ser chamada de educativa.

CREARMUNDOS: O que o senhor está chamando de ética? 
MÈLICH: É muito complicado definir a ética, existem distintas linhas, posturas e modos de conceituá-la. Eu estou de acordo com Wittgenstein, quando ele afirma que ética e estética são a mesma coisa, nos seus aforismos finais do livro Tractatus. Para mim, a ética não tem uma linguagem própria, a linguagem da ética é a estética. Somente se pode falar de ética (po) eticamente, porque ela está mais próxima da paixão do que da razão. E novamente concordo com Wittgenstein, quando ele diz que não se pode falar da ética, somente é possível mostrá-la. Portanto, para responder que é ética, preferiria mostrar as fotos de Sebastião Salgado. Se o leitor quer saber o que é ética que veja as fotos do fotógrafo brasileiro. Ou que leiam determinados livros como os de Primo Lévi, um sobrevivente de campos de concentração nazista. Ou que recorram à poesia. Um dos meus poetas preferidos, é o alemão Paul Celan, e deixo aqui um verso dele para ajudar a responder a pergunta:

Sou fiel, apenas se sou desertor .
Eu sou tu quando eu sou eu.

CREARMUNDOS: É uma resposta muito inspirada e intrigante! Agradecemos a atitude e gostaríamos de voltar ao tema que estava desenvolvendo: seu conceito de educação como um acontecimento ético. 
MÈLICH: Como o tema da diversidade faz parte da moda pedagógica atual, fala-se muito em aprender a tolerar as diferenças. Mas, há um tipo de relação de tolerância da diferença que acaba convertendo-se em indiferença. O importante do ponto de vista ético não é que o outro seja tolerado como diferente, mas sim que relação estabeleço com essa diferença. A Ética começa quando um é capaz de ser “deferente” (cuidadoso) com o outro. Ou seja, ocupar-se do outro , atendê- lo, cuidá-lo, acolhê-lo. Derrida, um filósofo francês, e Levinas, outro pensador contemporâneo dele, falam de uma ética da hospitalidade. Eu concordo com essa maneira de ver. 
Relacionando educação e ética: a educação é uma relação com um outro que necessita ser atendido, acolhido, cuidado. A relação educativa precisa ser uma relação de hospitalidade com o outro.

CREARMUNDOS: E por que o senhor diz que é um ACONTECIMENTO ético?  
MÈLICH: Vamos distinguir fatos de acontecimentos. Cada dia, ocorrem diversos fatos no mundo. E as pessoas não têm consciência, nem memória desses milhões de fatos que passam a elas mesmas e ao mundo. A vida segue independente deles.
Acontecimento é um tipo de fato que nos formam e transformam. O acontecimento é TRANSformador, mas também pode ser DEformador, porque  pode nos levar ao inferno, ao abismo, à destruição. Ou seja, um acontecimento pode nos levar ao êxito ou ao fracasso.  
O que faz com que a educação seja um acontecimento ético, é que NADA VOLTA A SER COMO ANTES. Há um antes e um depois de cada encontro de cada olhar, cada momento. Ainda que muito disso seja esquecido depois, o sujeito fica transformado pelo encontro educativo. E isso é gratuito! Ou seja, a educação como um acontecimento ético não é um intercâmbio, porque não depende da reciprocidade; quem a oferece deve dá-la sem querer nada em troca. Uma relação do tipo: eu lhe dou e depois você me dá, não é ética, é econômica! Imagina se transferimos isso para a relação familiar... A questão da paternidade me preocupa, porque os pais, de maneira geral, exigem que os filhos devolvam tudo o que deram.

CREARMUNDOS: A maneira como a avaliação é vivida nas escolas, é um pedido de “devolução do que foi oferecido” anteriormente. O que o senhor teria a dizer sobre isso?
MELICH: Essa maneira de avaliar não conecta com a perspectiva da educação como acontecimento ético. Afirmamos que todos os encontros são únicos, insubstituíveis, incomparáveis. Não há o que devolver e não há porque repetir para que o outro devolva bem o que lhe foi dado. Cada dia que vejo minha filha ou que entro na sala de aula e vejo meus alunos, tenho um encontro distinto. Quando se tem a sensação de que a relação com a pessoa amada (filho, aluno, amigo, companheiro, etc) é a mesma cada dia, e não há de nada novo, já não há ética, nem vida. A repetição sem novidade é a morte, ainda que novidade sem repetição é impossível.

II – Pedagogia da Finitude

CREARMUNDOS: O senhor declarou publicamente que se tivesse que resumir tudo o que já escreveu em uma só palavra, utilizaria a palavra FINITUDE. Inclusive nesse momento está envolvido na escrita de uma antropologia da finitude. Poderia nos explicar o que quer dizer FINITUDE? 
MÈLICH: É a melhor palavra que expressa a condição humana. O ser humano é um ser finito e o único que sabe com certeza é que nasceu e que vai morrer. Por isso digo que somos um ser NO mundo, em um tempo e em um espaço concretos, mas nunca estamos definitivamente instalados. É como se não tivéssemos uma casa definitiva e estivéssemos sempre “alugados”. Isso é o mesmo que dizer que o ser humano é um ser em um contexto, por isso necessita da memória! Graças à ela, pode responder à pergunta: quem sou eu? . E a reposta será sempre provisória, porque sempre mudamos e renovamos a partir do que já somos.

CREARMUNDOS: Quando fala do fim está dizendo da morte do corpo ou se refere a outra dimensão humana? 
MÈLICH: O corpo é o tempo e o espaço, além de ser sua dimensão simbólica, por isso é o cenário da finitude e é um dos elementos mais maltratados na educação ocidental. O corpo vem sendo negado e inferiormente valorado, quando comparado à “alma”, que sempre parece algo tão nobre e elevado! E por que isso? Por que o corpo envelhece, caduca , morre. E a alma, pelo menos a platônica, não está submetida ao tempo, é imortal.
A pedagogia da finitude é uma pedagogia corpórea!
CREARMUNDOS: E a memória? Poderia nos falar um pouco mais sobre ela?
MÈLICH: A memória  dentro da perspectiva da finitude desempenha um papel fundamental. Ela não pode ser entendida apenas como recordação, mas sim como uma faculdade que permite ao ser humano instalar-se no tempo e no espaço. Ela nos remete ao passado, mas ao mesmo tempo nos lança ao futuro, porque é criativa e não é uma mera repetição ou lembrança do que ocorreu. A memória humana é também o esquecimento, porque seleciona o que seguirá no tempo. Difere da memória dos computadores que apenas armazenam. Um bom exemplo para isso, é o último romance de Milan Kundera,  A Ignorância, no qual duas pessoas que viveram a mesma historia, mas, recordam coisas totalmente distintas.

CREARMUNDOS: Podemos dizer que, nessa perspectiva, tudo é relativo?
MÈLICH: Não se pode dizer que a pedagogia da finitude afirma que tudo é relativo e negue o infinito e o absoluto. O que ela sinaliza é que o humano só pode falar do absoluto a partir do relativo; e do infinito, a partir do finito. Somos contextualizados!

III –Pedagogia poética: Escrita e  leitura

CREARMUNDOS: Em seu artigo intitulado: A palavra múltipla: por uma educação (po) ética , publicado no livro Habitantes de Babel – políticas e poéticas da diferença[2] , o senhor diz que uma educação poética vive no jogo, no conflito das interpretações, na contradição, porque nunca se está de todo em uma interpretação.  O senhor poderia nos explicar o que chama de Pedagogia/ educação poética?
MÈLICH: Uma educação poética é aquela estabelecida na finitude, portanto é aquela na qual a palavra expressa a tensão entre a novidade e a contingência, e, ao mesmo tempo, sinaliza uma dimensão inexprimível.
A pedagogia que defendo é uma pedagogia poética, ou seja, inspirada pela palavrados poetas, aqueles que acreditam que a realidade pode ser de outras maneiras. Existem pedagogias que correm da literatura como quem foge de um monstro. Há que se permitir que os poetas voltem a ocupar o centro da praça pedagógica. E afirmo isso da perspectiva da crítica e não do idealismo, sem a literatura, os fatos e as informações perdem seu contexto e tornam-se entidades pastosas e fixadas na imobilidade da abstração. Não existe escrita de um lado e vida do outro, o que há é uma biografia: a escrita da vida.

CREARMUNDOS: E como a pedagogia poética vê a questão da leitura e da escrita? 
MÈLICH: Vou dividir a respostas em dois blocos:
LEITURA
Para mim, a leitura é uma relação com o outro. Na leitura, esse outro é um conjunto de elementos que permanecem em qualquer contexto. Sempre que lemos entramos em relação com quem escreveu o livro, com os personagens, com um tempo e um espaço, com outras situações e com outros livros lidos anteriormente.
As relações humanas são relações com outros presentes e ausentes. A relação através da leitura é uma relação com ausentes, com aqueles que não estão e talvez nunca estarão presentes na minha realidade. Por exemplo, eu nunca estarei com Platão que é um autor com o qual me relacionei com freqüência ao longo dos anos. Nunca estarei com os personagens das obras que foram marcantes e ajudaram a configurar minha identidade. Disso se trata, através da leitura temos presentes em nossa vida, ausências que nos constituem como pessoa.
ESCRITA
Logicamente que minha versão da escrita não poderia ser diferente de como enfoco a leitura. Mas, utilizando a hermenêutica judaica como imagem, tentaremos acrescentar algo mais. Vejamos sua aplicação no exemplo dos 10 mandamentos, as duas primeiras palavras são: EU SOU e as duas últimas são: TU OUTRO – TU próximo. Se juntamos as duas compreendemos a tese básica dos mandamentos. No livro que escrevi com Fernando Bárcena: La Educación como acontecimiento ético , utilizamos algo similar, a primeira frase do livro, quando unida à última, expressa a idéia central do mesmo e explica como vejo a questão da escrita.
CREARMUNDOS: A revista seguiu a pista dada pelo entrevistado, foi até o livro mencionado e encontrou: 
PRIMEIRA FRASE: A vida de todo ser humano pode ser experimentada como uma aventura em distintos graus de intensidade, risco e atrevimento.
SEGUNDA FRASE: Devemos ser responsáveis pela palavra narrada, devemos nos compadecer e sofrer com aquele ou aqueles que não estão diante de nós, mas que nos deixaram como herança sua escrita.
MÈLICH: Essa conexão me permite falar da educação como um acontecimento ético. O livro dá seqüência à idéia da primeira frase. Mas, agora, convido o leitor para recrie esse texto e siga completando-a: a vida de todo ser humano pode ser entendida como...
MENSAGEM AOS LEITORES: 
CREARMUNDOS: O senhor gostaria de deixar uma mensagem para nossos leitores?
MÈLICH: A educação é configuração de uma identidade, de um si mesmo que nunca é de todo ele mesmo. Nesse sentido, parafraseando e transformando Kant, eu diria que um dos imperativos pedagógicos fundamentais é: chega a ser quem não é!
Se a educação é vivida como um acontecimento ético, ela transforma também o educador. Portanto, minha mensagem ao leitor é:  atreve a ser o outro, a transformar-se! Um professor que não tenha essa coragem não pode ser um bom educador. Um educador exageradamente seguro de seus conhecimentos, valores e princípios, não é capaz de colocá - los em discussão e essa atitude caracteriza um líder totalitário. Os gurus das seitas nunca mudam, porque se sentem na posição da Verdade, do Bem. Não percebem que, no fundo é apenas SUA concepção de bem e de verdade.
Por isso penso que a educação precisa ser formação tanto de quem educa quanto de quem é educado. Nós, os professores, devemos estar sempre aprendendo! Quando o professor é também aprendiz, a educação assume sua dimensão transformadora. Temos que seguir continuamente aprendendo, porque vivemos num mundo interpretado no qual as verdades definitivas desapareceram. Porque nossa condição é a crise e um perpétuo movimento entre a vida e a morte. E, enquanto esse movimento não cessa, brincamos, contamos nossa própria história e nos tornamos conscientes de que apenas estamos de passagem no mundo, ainda que sejamos convidados da vida!

CREARMUNDOS: A revista agradece a simpatia, alegria e a hospitalidade do entrevistado que demonstrou ser coerente com as idéias que defende!

PUBLICAÇÕES DO AUTOR:

·        Del extraño al cómplice: La educación en la vida cotidiana – ed. Anthropos, Barcelona, 1994
·        Antropología simbólica y acción educativa – ed. Paidós, Barcelona, 1996
·        Totalitarismo y fecundidad. La filosofía frente a Auschwitz – ed. Anthropos, Barcelona, 1998
·        La educación como acontecimiento ético – ed. Paidós, Barcelona, 1998
·        La ausencia del testimonio: ética y pedagogía en los relatos del holocausto – ed. Anthropos, Barcelona, 2001

Lola