sábado, 28 de julho de 2018

Quanto fui peregrino





Quanto fui peregrino



Quanto fui peregrino

Do meu próprio destino!
Quanta vez desprezei
O lar que sempre amei!
Quanta vez rejeitando
O que quisera ter,
Fiz dos versos um brando
Refúgio de não ser!
.
E quanta vez, sabendo
Que a mim estava esquecendo,
E que quanto vivi —
Tanto era o que perdi —
Como o orgulhoso pobre
Ao rejeitado lar
Volvi o olhar, vil nobre
Fidalgo só no chorar...
.
Mas quanta vez descrente
Do ser insubsistente
Com que no Carnaval
Da minha alma irreal
Vestira o que sentisse
Vi quem era quem não sou
E tudo o que não disse
Os olhos me turvou...
.
Então, a sós comigo,
Sem me ter por amigo,
Criança ao pé dos céus,
Pus a mão na de Deus.
E no mistério escuro
Senti a antiga mão
Guiar-me, e fui seguro
Como a quem deram pão.
.
Por isso, a cada passo
Que meu ser triste e lasso
Sente sair do bem
Que a alma, se é própria, tem,
Minha mão de criança
Sem medo nem esperança
Para aquele que sou
Dou na de Deus e vou.



Fernando Pessoa,.
7-10-1930
Poesias Inéditas (1919-1930)



                                            Lola