Fernando Pessoa, in 'Carta a Ofélia Queiroz (1920)'
Desculpa
o papel impróprio em que te escrevo; é o único que encontrei na pasta, e aqui
no Café Arcada não têm papel. Mas não te importas, não? Acabo de receber a tua
carta com o postal, que acho muito engraçado.
Ontem
foi — não é verdade? — uma coincidência engraçadíssima o facto de eu e minha
irmã virmos para a Baixa exactamente ao mesmo tempo que tu. O que não teve
graça foi tu desapareceres, apesar dos sinais que eu te fiz. Eu fui apenas
deixar minha irmã ao Avda. Palace, para ela ir fazer umas compras e dar um
passeio com a mãe e a irmã do rapaz belga que aí está. Eu saí quasi
imediatamente, e esperava encontrar-te ali próximo para falarmos. Não quiseste.
Tanta pressa tiveste de ir para casa de tua irmã!
E,
ainda por cima, quando saí do hotel, vejo a janela de casa de tua irmã armada
em camarote (com cadeiras suplementares) para o espectáculo de me ver passar!
Claro está que, tendo visto isto, segui o meu caminho como se ali não estivesse
ninguém. Quando eu pretendesse ser palhaço (para o que, aliás, o meu feitio
natural pouco serve) oferecia-me directamente ao Coliseu. Era o que faltava
agora! Que eu tolerasse a brincadeira de ser dado en
spectacle para a família!
Se
não havia maneira de evitares estares à janela com 148 pessoas, não estivesses.
Já que não quiseste esperar-me ou falar-me, ao menos tivesses a cortesia — já
que não podias aparecer só à janela — de não aparecer. Ora eu não posso estar a
explicar-te estas coisas. Se o teu coração (supondo a existência desse senhor)
ou a tua intuição te não ensinam instintivamente estas cousas, eu, por mim, não
posso constituir-me em teu professor delas.
Quando
me dizes que o que mais desejas é que eu case contigo, é pena que me não expliques
que tenho ao mesmo tempo que casar com tua irmã, teu cunhado, teu sobrinho e
não sei quantas freguesas da tua irmã.
Sempre
e muito teu
Fernando
Esta
carta foi escrita no esquecimento de que costumas mostrar as minhas cartas a
toda a gente. Se me tivesse lembrado disso — acredita — eu tê-la-ia suavizado
um pouco. Mas agora já é tarde; não importa. De resto, nada importa. F.
Fernando Pessoa