Breve introdução à arte do abraço
O abraço é uma longa
conversa que acontece sem palavras. Tudo
o que tem de
ser dito soletra-se no silêncio
Diz-se que o nosso corpo tem a forma de um abraço.
Talvez por isso a tarefa de abraçar seja tão simples, mesmo quando temos de
percorrer um longo caminho. O abraço tem uma incrível força expressiva.
Comunica a disponibilidade de entrar em relação com os outros, superando o
dualismo, fazendo cair armaduras e motivos, cedendo, nem que seja por
instantes, na defesa do espaço individual. Há uma tipologia vastíssima de
abraços, e cada uma delas ensina alguma coisa sobre aquilo que um abraço pode
ser: acolhimento e despedida, congratulação e luto, reconciliação e embalo,
afeto ou paixão. Os abraços são a arquitetura íntima da vida, o seu desenho
invisível, mas absolutamente presente; são plenitude consentida ao desejo e
memória que revitaliza. Todos nos reconhecemos aí: em abraços quotidianos e
extraordinários, abraços dramáticos ou transparentes, abraços alagados de
lágrimas ou em puro júbilo, abraços de próximos ou de distantes, abraços
fraternos ou enamorados, abraços repetidos ou, porventura, naquele único e idealizado
abraço que nunca chegou a acontecer mas a que voltamos interiormente vezes sem
conta.
No princípio era o abraço, se pensarmos no colo que
nos nutriu na primeira infância. Essa foi, para a maioria de nós, a primeira e
reconfortante forma de comunicação. Mas a necessidade de um abraço acompanha a
nossa existência até ao fim. O abraço é uma longa conversa que acontece sem
palavras. Tudo o que tem de ser dito soletra-se no silêncio, e ocorre isto que
é tão precioso e afinal tão raro: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de
outro coração. “Em teu abraço eu abraço o que existe,/ a areia, o tempo, a
árvore da chuva./ E tudo vive para que eu viva” — garantem os versos de Neruda.
Calcula-se que um ser humano precise de 1500 abraços
por ano para sobreviver. Dá uns quatro abraços por dia. Mas os números podem
subir, pois encontram-se instruídos nessa humaníssima ciência chamada
abraçoterapia a defender 12. Está também calculado – para quem ache graça à
semântica dos números – que a duração média de um abraço entre duas pessoas é
de três segundos. Mas há abraços mais demorados.
O dos chamados “amantes de
Valdaro”, por exemplo, tem pelo menos 6000 anos. Trata-se de dois esqueletos
que remontam ao Neolítico, descobertos, há não muito tempo, numa necrópole
perto de Mântua. Crê-se que pertenceram a uma mulher e um homem, entre os 18 e
os 20 anos. Representam algo de único no mundo, quer pela antiguidade, quer
pela posição em que foram encontrados: os corpos vizinhos e cruzados, o braço
dele em torno do pescoço dela, numa espécie de abandono que talvez tenha sido o
de um amor. Não há sinais de violência e, por isso, exclui-se a hipótese de
terem sido mortos. O mais provável é que tenham perecido a uma doença, de fome
ou de frio. Há 6000 anos, porém, o seu abraço permanece inalterado.
O Abraço, Helena Almeida, Serralves |
Um dos momentos mais extraordinários da arte
contemporânea portuguesa é a sequência fotográfica, de Helena Almeida,
intitulada “O Abraço”. São sete imagens de grandes dimensões (180 x 100 cm) em
que a fotógrafa e o marido se abraçam. Apenas isso. Estão ambos sentados num
banco que só dá para uma pessoa e apertam-se, agarram-se, suplicam-se, buscando
no outro amarra, como se navegassem numa jangada destinada a um naufrágio
irremediável. Por vezes o abraço deles parece uma luta, por vezes um reencontro
para sempre. Os corpos dão-se a ver numa fragilidade que dói, num equilíbrio
mais do que precário, instáveis e tensos como não se julgaria. Mas são, em todo
o tempo, o radical abrigo um do outro, a passagem mais do que a fronteira, o interminável
espanto de reconhecer no corpo do outro o nosso, no nosso o do outro.
José Tolentino Mendonça,
in Revista Expresso, Edição 2256 de 22/01/16
Lola