Sorte infinita
Breve partilha da minha sorte
infinita
Como se alguma coisa me chamasse, levanto
o rosto do livro. Acabado de chegar, surpreendo o mundo inteiro a existir em
cada detalhe. Entre as páginas, pouso um marcador que o André fez na escola e
me ofereceu no dia do pai. Cada movimento é muito vagaroso para não perturbar
nada. Mantenho a distância. E fico apenas a assistir, como se ainda estivesse a
ler, como se tudo continuasse sem mim.
A paz do cloro mistura-se com o fim da
tarde e com o azul limpo das paredes da piscina. Calculo que os meus filhos
estejam mais ou menos a vinte metros de mim. Descalços sobre a relva, jogam com
raquetes de madeira. A bola de borracha faz um barulho surdo, sem eco, toc, toc.
Às vezes, essa cadência mantém-se certa durante algum tempo mas, depois, sem
explicação, perde-se, não dá para confiar na regularidade desse ritmo.
O João, com dezasseis anos e mais de um metro e oitenta, atira a bola para o André, com oito anos, quase nove, que pode ser capaz de apanhá-la ou não. Em qualquer dos casos, entusiasmam-se com esse desafio, riem-se e as suas vozes atravessam esta distância, perdendo pelo caminho a forma das palavras, mas mantendo o seu tom, a sua idade, a sua música.
O João, com dezasseis anos e mais de um metro e oitenta, atira a bola para o André, com oito anos, quase nove, que pode ser capaz de apanhá-la ou não. Em qualquer dos casos, entusiasmam-se com esse desafio, riem-se e as suas vozes atravessam esta distância, perdendo pelo caminho a forma das palavras, mas mantendo o seu tom, a sua idade, a sua música.
Numa cadeira ao lado da minha, inclinada
para trás, a minha mãe ressona baixinho, como se o ar lhe raspasse no céu da
boca. Tem os óculos desacertados dos olhos e a expressão séria que sempre faz
quando está a dormir. Tem as mãos juntas, pousadas sobre a barriga, os dedos
tortos, a artrose. Tem as pernas esticadas, os dedos gordos dos pés a apontarem
para qualquer lado, a dormirem também.
Neste momento, tenho a noção precisa do
tamanho da minha sorte.
No ano passado, fomos de férias juntos
pela primeira vez, só nós. Em novembro, quando a minha mãe teve o AVC, pensei
em várias ocasiões: ainda bem que fizemos essa viagem, ainda bem que não
esperámos mais. Quando recuperou a fala, ela própria disse a mesma coisa. Estes
meses passaram com a minha mãe a reaprender a andar, a segurar nos objectos, a
falar. Não sei se os meus filhos chegaram a entender completamente aquilo que
aconteceu à avó. Eles ainda não são capazes de perceber que ela é uma rapariga
nova no corpo de uma mulher de setenta e um anos, a ouvir mal, a andar devagar,
a usar palavras estranhas, a contar histórias antigas e a não gostar de todas
as comidas.
Mesmo sem essa tangente à morte, mesmo sem
a violência dos detalhes que não descrevo aqui, acredito que continuaria a ser
capaz de avaliar a dimensão da sorte deste momento. Desde cedo que temo a
possibilidade de passar pelas horas mais felizes da minha vida sem as
reconhecer. Não sei com quem aprendi esse talento. Sinto pena silenciosa quando
vejo alguém recordar um tempo em que foi feliz como se, só naquele instante,
demasiado tarde, identificasse a felicidade que atravessou. Não quero esse
desperdício para mim. A vontade de reconhecer os melhores momentos da minha
vida no instante em que estou a vivê-los, dá-me a lucidez de estar sempre
alerta para a felicidade. É essa a minha sorte.
Os meus filhos jogam com as raquetes de
madeira. Quando um ou outro não acerta na bola, dão dois ou três passos para ir
buscá-la entre os arbustos. A minha mãe continua a dormir, os seus sonhos
parecem tranquilos como as suas sobrancelhas. O tempo desliza nestas cores do
entardecer. O sol, de certeza, encontrou o horizonte. Somos sempre os últimos a
sair, não temos pressa.
Depois, quando sairmos, voltaremos a ser
um grupo invulgar de quatro elementos com muitas diferenças entre si: um menino
de oito anos, irrequieto, cheio de coisas para dizer; um adolescente de
dezasseis anos, carapinha, aparelho nos dentes e muito vagar; uma mulher de
setenta e um anos, a descer degraus com dificuldade, mas animada para todas as
hipóteses que surjam; e eu, de chinelos, t-shirts difíceis de compreender,
estranho e tatuado.
Mas isso será depois. Agora, há o rumor da
água da piscina, empurrada por uma brisa que não se sente, há a minha mãe aqui
ao lado, há os meus filhos a serem irmãos e há esta sorte infinita que me
rodeia e me acompanha.
Há esta gratidão compacta que me
preenche.
José Luís Peixoto,
in revista Visão (julho
de 2013)
Lola