Como se sobrevive à morte de um filho?
«É como se nos
arrancassem um membro e andássemos todos os dias à procura dele», diz Manuel.
«A pessoa que eu era, morreu», diz Isabel. «Tiraram-me a alegria, a vida, o
coração», diz Fernando. Todos perderam filhos, a mais dura prova a que uma mãe
ou um pai podem estar sujeitos.
Como se continua depois de acontecer o que não
pode acontecer?
«Hoje é dia 18, o David
vai morrer daqui a um mês.» Na verdade, passam agora dez anos. Mas para a mãe
as datas confundem-se. Ficou perdida, desorientada com elas, um comportamento
comum em pais que perderam os filhos. «Às vezes, até penso no passado
transposto para futuro. E acabo a dizer coisas como: “Ontem foi o dia em que o
David vai entrar para o hospital”.»
O filho de Isabel
Venâncio morreu em 2007, mas «é como se fosse ser daqui a um mês». Quando a
data certa se aproxima, vai revivendo os dias que precederam a morte de David,
incluindo aquele em que ele entrou no Hospital de Santo António, no Porto, e
ela percebeu que entravam dois mas só sairia um. Era inevitável: por aquilo que
a médica lhe ia dizendo, Isabel percebeu que David «estava irremediavelmente
invadido pelo cancro». Cinco dias depois, confirmou-se: o filho morreu.
Como é
que uma mãe sobrevive a isto?
«A pessoa que eu era
morreu. Sobreviveu no aspeto exterior. Quem cá está é uma mistura de muitos
pedaços: fica-se completamente estilhaçada. Não há hipótese de ver um filho
morrer e ficar igual. Não há hipótese de alguém sobreviver àquela dor porque é
uma coisa que nos derrota completamente. Só se quer ir com ele e, quando se
acorda daquele momento, é-se uma pessoa completamente diferente.»
Ninguém está preparado
para perder um filho.
Nem Isabel, a quem disseram que David tinha 2% de
probabilidade de sobreviver, poderia preparar-se. «Eu estava avisada desde o
início, mas ninguém se prepara para aquilo que vai acontecer porque há uma
recusa natural. Diz-se que isto não pode acontecer. E mesmo agora, que
aconteceu, eu continuo a achar que não pode acontecer. E vai acontecer daqui a
um mês e acontece todos os dias.»
Fernando Claudino perdeu
o filho a 3 de maio do ano passado, vítima de uma infeção hospitalar com uma
bactéria multirresistente. Em março, Bruno foi ao Hospital Lusíadas, em Lisboa,
fazer um exame à vesícula, conta o pai. Depois, foi transferido para o Hospital
de Santa Maria, onde acabaria por morrer. Bruno era um homem saudável, 42 anos
feitos no hospital, e corria todos os dias. Aliás, pai e filho corriam juntos e
participavam em maratonas.
Isabel
Venâncio não é crente. Depois da morte do filho David, há dez anos, juntou-se a
um pequeno grupo de pais em luto, do qual fazia parte uma mãe muito católica,
que lhe perguntou como é que ela aguentava sem ajuda divina. «Disse-me ainda
que o David está bem, que é outra das frases feitas que eu não suporto. (…) Eu
não acredito em Deus, não tenho fé de espécie alguma. No entanto, as pessoas
que acreditam na vida eterna têm esse consolo.»
«Tiraram-me a alegria, a
vida, o coração, tiraram-me tudo. Eu e a minha mulher vamos para casa à
meia-noite, andamos por aí perdidos para não estarmos a olhar para as
fotografias do Bruno. Quando estamos em casa, estamos sempre a chorar. Vamos
para o centro comercial, armados em parolos.» Apesar da revolta que sente, tem
fé e acredita que voltará a estar com o filho. «Por vontade da minha mulher
íamos já ter com ele, porque ela diz que não anda cá a fazer nada. Nunca pensei
que estivesse guardado para isto.»
Fernando continua a
correr todos os dias, na Quinta das Conchas em Lisboa. «Começo a olhar para as
árvores e parece que estou no paraíso. E parece que o meu filho me vai dar um
sinal.» Ao contrário de Fernando, Isabel não é crente. Depois da morte de
David, juntou-se a um pequeno grupo de pais em luto, do qual fazia parte uma
mãe muito católica, que lhe perguntou como é que ela aguentava sem ajuda
divina. «Disse-me ainda que o David está bem, que é outra das frases feitas que
eu não suporto. Achava isso uma coisa bárbara de se dizer», recorda Isabel.
«Sei que não há futuro. Não há David. Eu acho que incorporo um bocadinho do
David, mas o David morreu. Nunca mais vou ver o David, nunca mais lhe vou
sentir o cheiro, nunca mais lhe vou tocar na mão. O David perdeu-se. Eu não
acredito em Deus, não tenho fé de espécie alguma.
No entanto, as pessoas
que acreditam na vida eterna têm esse consolo.»
Elizabeth Peralta e Carla Coelho são psicólogas com formação específica e prática clínica na área do luto. Mas esclarecem logo que «ninguém é especialista no luto de ninguém». A morte de um filho é sempre «uma dor muito intensa, um acontecimento devastador na vida de um pai», diz Carla. Sendo cada filho «único e insubstituível», este tipo de luto prolonga-se por mais tempo, é vivido com muito mais intensidade e «nunca se chega a um estado de aceitação», junta Elizabeth. As palavras são muito importantes quando se está a acompanhar um pai ou uma mãe em luto. As duas psicólogas tentam ajudar os pais a superar os momentos de maior angústia para que estes passem a ser mais de tristeza e menos de angústia.
Elizabeth Peralta e Carla Coelho são psicólogas com formação específica e prática clínica na área do luto. Mas esclarecem logo que «ninguém é especialista no luto de ninguém». A morte de um filho é sempre «uma dor muito intensa, um acontecimento devastador na vida de um pai», diz Carla. Sendo cada filho «único e insubstituível», este tipo de luto prolonga-se por mais tempo, é vivido com muito mais intensidade e «nunca se chega a um estado de aceitação», junta Elizabeth. As palavras são muito importantes quando se está a acompanhar um pai ou uma mãe em luto. As duas psicólogas tentam ajudar os pais a superar os momentos de maior angústia para que estes passem a ser mais de tristeza e menos de angústia.
Mas não há exatamente conselhos a dar.
A 16 de outubro de 1999,
Manuel Barata conduzia a mulher e as duas filhas a Figueiró dos Vinhos para um
encontro familiar. De súbito, um camião atravessou-se à frente do carro em que
seguiam. Para não bater nele, Manuel encostou-se à direita, roçou no lancil de
uma área de serviço, o carro bateu num prédio e capotou. Quando olhou para trás
não viu nenhuma das filhas dentro do carro. Vanessa, de 14 anos, estava no
chão. O pai chamou por ela várias vezes mas ela não respondeu. A outra filha,
de 15, estava caída numa valeta, mas consciente. Enquanto esteve internada, os
pais nunca lhe disseram o que tinha acontecido à irmã.
Manuel culpa-se pelo
acidente, culpam-no familiares e amigos. «Foste tu que a puseste debaixo do
chão», chegaram a dizer-lhe. E ele foi-se afastando de muita gente, foi
cortando laços com amigos e familiares. Dezoito anos depois, Manuel e a mulher
andam sempre com a morte da filha na cabeça. «Isto é uma coisa que não se apaga,
são muitas as noites em branco e é como se nos arrancassem um membro e
andássemos todos os dias à procura dele. Praticamente não se vive, andamos à
tona, à deriva.»
Manuel foi, entretanto, a
uma das sessões psicoterapêuticas que Elizabeth Peralta promove. Nesses
momentos, com outros pais em luto, «as pessoas são invadidas por um sentimento
genuíno de compaixão pelo outro», diz a psicóloga. É também esse sentimento que
Carlos Céu e Silva, presidente da associação Laços Eternos, em Lisboa, deteta
nos grupos de entreajuda. Os encontros são moderados por um pai ou por uma mãe
em luto que se sinta capaz de servir de modelo ou fonte de inspiração para os
que chegam «destruídos e completamente revoltados com a vida».
O trabalho do técnico é
estar em silêncio e só intervir quando há uma solicitação direta ou, no final,
para focar um assunto que foi esquecido.«Os pais precisam de afeto, de colo, de
alguém que seja empático com a sua dor. Podem estar anestesiados partes do dia,
mas há ali momentos de uma infeliz lucidez em que percebem que a realidade é
incontornável», explica Céu e Silva.
A Laços Eternos é um
espaço de encontro de pais, mães, mas também de irmãos. «Os irmãos sofrem
duplamente: assistem à dor e ao desespero dos pais, à mudança de vida. Muitos
pais deixam de trabalhar, alteram os hábitos e os filhos que ficam têm de estar
disponíveis para aguentar a depressão ou a angústia dos pais. Têm de estar do
lado deles e abafar a própria dor», diz Carlos Céu e Silva.
A morte de um
filho é sempre «uma dor muito intensa, um acontecimento devastador na vida de
um pai», diz a psicóloga Carla coelho. «Sendo cada filho único e
insubstituível», este tipo de luto é vivido com mais intensidade e «nunca se
chega a um estado de aceitação», acrescenta a colega Elizabeth peralta. As duas
psicólogas tentam ajudar os pais a superar momentos de maior angústia para que
estes passem a ser mais de tristeza e menos de angústia.
Numa manhã de domingo, no
final de abril de 2012, Carolina Sobrinho estava no Estoril Open a ver um jogo
de ténis quando recebeu uma chamada telefónica. Então com 17 anos, ouviu do
outro lado da linha o pai a dizer que a ia buscar, que tinha acontecido uma
coisa com a irmã. Ana perdeu a vida aos 22 anos num acidente de viação perto de
Málaga, em Espanha. Carolina, a irmã do meio, que nunca tinha ido a um funeral,
assumiu instintivamente «as rédeas da família».
Os pais tiveram de ir
para Espanha naquela manhã de domingo e ela ficou com Tininha, a irmã mais
nova, 15 anos, na altura, e com a avó, «que estava inconsolável». «Havia muitas
dúvidas no ar. Porque é que nos aconteceu isto? Porquê à minha irmã? Mas não
podemos questionar, há coisas sobre as quais nunca vamos obter resposta.»
Agora, com a idade que a
irmã tinha quando morreu, Carolina é uma pessoa diferente: «Não me iludo tanto.
Tenho mais consciência do presente. Deixei de ter muitos sonhos.» Ainda lhe
custa dizer que já só tem uma irmã. Ela e a Tininha fazem questão de manter a
Ana presente: usam a roupa dela, falam sobre ela com os amigos. Carolina,
recém-licenciada em Direito, sente-se próxima da Ana quando, por exemplo, ouve
a música de Sade de que a irmã gostava muito. «E quero ir a sítios onde ela
gostava de ir – não por ela, por mim. Mas com ela.»
Os últimos anos de Isabel
Venâncio têm sido «conturbados e difíceis, feitos de choro, incompreensão,
raiva e instintos destrutivos». Já não pode ouvir frases feitas como «É preciso
é ser positivo, andar para a frente, é nossa obrigação viver.» «Eu não acho que
uma pessoa tenha obrigação de viver seja o que for. Vive pura e simplesmente
aquilo que tem de viver, não tem obrigações nenhumas», sintetiza. «Eu sou uma
pessoa com muitos medos porque o medo entranhou-se de tal maneira que ficou. É
um medo que paralisa. Começo logo com suores frios, fico enjoada. É como se me
viesse o vómito à garganta.»
Isabel não aceita agora
melhor a morte do filho. «Compreendo. É uma coisa que não pode acontecer, mas
acontece. Mas aceitar, continuo a ter muita dificuldade em aceitar aquilo que
nos aconteceu. Persiste o medo retroativo de que o David morra. Mas não se deve
deixar de falar sobre um amor tão grande. Deixar de falar do David era matá-lo
mesmo.»
Não é expectável que os
pais em luto acabem por aceitar aquela que é a mais cretina das mortes. Não há
um plano de tratamento nem há especialistas. Mas há a esperança de que a
angústia vá dando lugar a outros sentimentos, como a tristeza. Para isso, os
psicólogos estão munidos das únicas ferramentas disponíveis para tentar
sossegar a dor dos pais: ouvidos atentos, palavras e compreensão.
Onde
pedir ajuda
Há várias associações de
apoio à pessoa em luto, uns mais informais do que outros, com apoio de forma
presencial ou virtual (fóruns online e redes sociais). Os grupos de partilha e
entreajuda são uma configuração comum nestas associações. É o caso da APELO –
Associação de Apoio à Pessoa em Luto (www.apelo.pt),
com sede em Aveiro e delegações em Braga, Lisboa e brevemente em Estremoz. A
Laços Eternos – Associação de Apoio a Pais em Luto (www.lacoseternos.eu) presta auxílio nos
lutos de filhos e irmãos. Com sede em Lisboa, tem protocolos com diferentes
entidades em Évora, Parede, Porto e Setúbal. O Grupo de Pais em Luto do Oeste (www.choeste.min-saude.pt/gplo) formou-se
também para responder às necessidades criadas com a extinção d’A Nossa Âncora,
em 2013. Em 2015, investigadores das universidades do Minho e de Memphis, nos
Estados Unidos, lançaram a plataforma Consulta de Luto Online (www.consultaluto.com), que disponibiliza
consultas através de videochamada e e-mail.
In Noticias Magazine
de 9 de Junho
de 2017
Texto
Hélder Gomes
Eu também conheço esta dor
amargamente cortante
que perfura o coração
e destrói lentamente
o nosso fragilizado corpo!
12 de Janeiro de 2007
fiquei orfã da minha filha!
Diana, 22 anos, a metade de mim!
Porquê?
Lola