segunda-feira, 19 de junho de 2017

Corpos e Amores

Corpos e Amores
Todos os corpos, todos os amores
British Queer Art 1861-1967, na Tate Britain, explora uma complexidade de histórias, vidas e identidades por descobrir e contar. Ou como um conjunto de figuras, num mundo distante das movimentações LGBT, criaram um espaço de liberdade e de expressão para as suas obras e vidas.

Esta exposição, British Queer Art 1861-1967, é um princípio. Aqui, no sentido de corresponder não ao estabelecimento de uma teoria e de uma definição do que foi a arte queer em Inglaterra, mas o de uma tentativa não tanto de mapear documentos, imagens e objectos mas de explorar a complexidade de um conjunto de histórias, vidas e identidades que estão por descobrir e contar. Trata-se de uma exposição histórica porque se fixa num período marcado por dois acontecimentos determinantes: a abolição da pena de morte por sodomonia em 1861 e a descriminalização parcial do sexo entre homens em 1967. E trata-se de uma exposição local porque se concentra na produção artística produzida em Inglaterra durante aquele período. Ainda assim é um caso interessante de como um conjunto de figuras, ainda distantes da forma que os movimentos LGBT irão assumir posteriormente, conseguem criar um espaço de liberdade e de expressão não só para as suas obras, mas também para as suas vidas. Este é um dos pontos mais interessantes da exposição da Tate Britain: não se concentra tanto na maneira como a identidade de género de diferentes artistas era expressa numa pintura, numa escultura ou num poema, mas no modo como para estes autores as suas obras artísticas foram instrumentos de criação de uma identidade.

Desejo e afirmação

Ainda que possam fixar limites cronológicos e geográficos, a história que aqui se conta é uma história complicada de sexualidades e desejos a maior parte das vezes escondidos e dissimulados. Se com os universos sociais e artísticos de nomes como Virginia Woolf ou Oscar Wilde é fácil estabelecer uma relação, na maior dos casos ela está velada e, por isso, como explica a curadora Clare Carlow, esta é uma história difícil de contar porque, disse ao The Guadian, as obras demonstram atitudes muito diferentes que vão desde a ansiedade à celebração. E dá como exemplo a pintura de Walter Crane (1845-1915) de 1877, O renascimento de Vénus: “A mulher de Crane não queria que o marido pintasse e visse modelos femininas nus, por isso em vez de uma modelo para a sua deusa do amor ele usou um modelo novo bem conhecido chamado Alessandro di Marco. Mas este truque desmorou-se quando o pintor Frederick Leighton viu o trabalho na primeira exibição da pintura da Galeria Grosvenor naquele ano e gritou: ‘Mas meu querido, isso não é Afrodite, é Alessandro!’, supostamente acrescentando que, na luz do sol italiana, o menino passou por Venus.” Esta história é interessante porque numa era que condenou as mulheres por se exporem despidas diante dos artistas, é o corpo masculino que assume o lugar central nesse universo sensual e formal feminino que inspirou tantos artistas.
E que a arte seja lugar de articulação de desejo e sensualidade é também o que dá fama a outra pintura famosa nesta exposição em que a artista se auto-representa enquanto contempladora de um nu feminino. Auto-Retrato com Nu [Self Portrait with Nude, 1913] de Laura Knight (1877-1970), foi vista muitas vezes como perigosa, repelente e vulgar, nas palavras de um crítico do Daily Telegraph. Trata-se de uma obra com qualidades formais evidentes, como a invulgar utilização de cores, a sobreposição de diferentes planos espaciais, a composição complexa em que a artista usa um jogo de espelhos para representar o seu próprio atelier e a sua actividade de pintora. No entanto a Royal Academy recusou-se a expor a pintura, ainda que depois em 1936 fizesse desta artista a primeira mulher a receber o estatuto de membro permanente. A recusa baseava-se não tanto em questões artísticas, mas no modo como se tratava de uma obra crítica em primeiro lugar da proibição vigente em Inglaterra que impedia as estudantes de participarem nas aulas de modelo vivo: em contraste com o seus colegas homens, tinham de pintar os corpos a partir de representações e obras pré-existentes e esta pintura é um claro desafio a essa norma por colocar no espaço do atelier de uma artista um corpo nu feminino a ser pintado; em segundo lugar, através da duplicação de corpos, Auto-Retrato com Nu pode ser entendida como lugar de desejo feminino e da sua afirmação.


 NUNO CRESPO Londres 
17 de Junho de 2017, 14:06



Lola