Corpos e Amores
Todos os corpos, todos os amores
British Queer Art 1861-1967, na Tate Britain, explora uma complexidade de histórias, vidas e
identidades por descobrir e contar. Ou como um conjunto de figuras, num mundo
distante das movimentações LGBT, criaram um espaço de liberdade e de expressão
para as suas obras e vidas.
Esta exposição, British Queer Art 1861-1967, é um princípio.
Aqui, no sentido de corresponder não ao estabelecimento de uma teoria e de uma
definição do que foi a arte queer em Inglaterra, mas o de uma
tentativa não tanto de mapear documentos, imagens e objectos mas de explorar a
complexidade de um conjunto de histórias, vidas e identidades que estão por
descobrir e contar. Trata-se de uma exposição histórica porque se fixa num
período marcado por dois acontecimentos determinantes: a abolição da pena de
morte por sodomonia em 1861 e a descriminalização parcial do sexo entre homens
em 1967. E trata-se de uma exposição local porque se concentra na produção
artística produzida em Inglaterra durante aquele período. Ainda assim é um caso
interessante de como um conjunto de figuras, ainda distantes da forma que os
movimentos LGBT irão assumir posteriormente, conseguem criar um espaço de liberdade
e de expressão não só para as suas obras, mas também para as suas vidas. Este é
um dos pontos mais interessantes da exposição da Tate Britain: não se concentra
tanto na maneira como a identidade de género de diferentes artistas era
expressa numa pintura, numa escultura ou num poema, mas no modo como para estes
autores as suas obras artísticas foram instrumentos de criação de uma
identidade.
Desejo e afirmação
Ainda que possam fixar limites cronológicos e geográficos, a história que
aqui se conta é uma história complicada de sexualidades e desejos a maior parte
das vezes escondidos e dissimulados. Se com os universos sociais e artísticos
de nomes como Virginia Woolf ou Oscar Wilde é fácil estabelecer uma relação, na
maior dos casos ela está velada e, por isso, como explica a curadora Clare
Carlow, esta é uma história difícil de contar porque, disse ao The
Guadian, as obras demonstram atitudes muito diferentes que vão desde a
ansiedade à celebração. E dá como exemplo a pintura de Walter Crane (1845-1915)
de 1877, O renascimento de Vénus: “A mulher de Crane não queria que
o marido pintasse e visse modelos femininas nus, por isso em vez de uma modelo
para a sua deusa do amor ele usou um modelo novo bem conhecido chamado
Alessandro di Marco. Mas este truque desmorou-se quando o pintor Frederick
Leighton viu o trabalho na primeira exibição da pintura da Galeria Grosvenor
naquele ano e gritou: ‘Mas meu querido, isso não é Afrodite, é Alessandro!’,
supostamente acrescentando que, na luz do sol italiana, o menino passou por
Venus.” Esta história é interessante porque numa era que condenou as mulheres
por se exporem despidas diante dos artistas, é o corpo masculino que assume o
lugar central nesse universo sensual e formal feminino que inspirou tantos
artistas.
E que a arte seja lugar de articulação de desejo e sensualidade é também o
que dá fama a outra pintura famosa nesta exposição em que a artista se
auto-representa enquanto contempladora de um nu feminino. Auto-Retrato
com Nu [Self Portrait with Nude, 1913] de Laura Knight
(1877-1970), foi vista muitas vezes como perigosa, repelente e vulgar, nas
palavras de um crítico do Daily Telegraph. Trata-se de uma obra com
qualidades formais evidentes, como a invulgar utilização de cores, a
sobreposição de diferentes planos espaciais, a composição complexa em que a
artista usa um jogo de espelhos para representar o seu próprio atelier e
a sua actividade de pintora. No entanto a Royal Academy recusou-se a expor a
pintura, ainda que depois em 1936 fizesse desta artista a primeira mulher a
receber o estatuto de membro permanente. A recusa baseava-se não tanto em
questões artísticas, mas no modo como se tratava de uma obra crítica em
primeiro lugar da proibição vigente em Inglaterra que impedia as estudantes de
participarem nas aulas de modelo vivo: em contraste com o seus colegas homens,
tinham de pintar os corpos a partir de representações e obras pré-existentes e
esta pintura é um claro desafio a essa norma por colocar no espaço do atelier de
uma artista um corpo nu feminino a ser pintado; em segundo lugar, através da
duplicação de corpos, Auto-Retrato com Nu pode ser entendida
como lugar de desejo feminino e da sua afirmação.
17 de Junho de 2017, 14:06
Lola