domingo, 6 de agosto de 2017

Maria Teresa Horta



Maria Teresa Horta
“A paixão pode magoar, mas é tudo o que há de mais 
maravilhoso”

Aos 80 anos lança um novo livro, “Poesis”, com a certeza de que ela é a sua própria poesia. Conversa com caminho de regresso à infância e à génese de uma mulher-poetisa insubordinada, desobediente e apaixonada

Maria Teresa Horta posa para a fotografia. Sobre ela paira um candeeiro. Um globo na forma de uma gota pendente que a mão de um anjo ou de uma mulher agarra. Para a poetisa, é a mão de uma mulher, uma mulher com asas. Quando era pequena, conta, costumava deitar-se no chão e ficar a observar essa figura tão insubmissa e desobediente quanto ela própria quis ser. Ou provou ser, quando publicou “Minha Senhora de Mim”, em abril de 1971, incomodando ‘os bons costumes’ da ditadura de Salazar, que não perdoava às mulheres a escrita erótica; ou quando escandalizou mais uma vez o regime com “Novas Cartas Portuguesas”, que escreveu juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa; ou quando se recusou a receber o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, das mãos de Pedro Passos Coelho, atribuído ao seu livro “As Luzes de Leonor”, sobre a sua quinta avó, a marquesa de Alorna. Com traduções de poemas seus em inglês, edições a sair em França de “A Dama e o Unicórnio” (2013), um livro de poesia acabado de publicar, “Poesis” (2017), e muitos poemas ainda por escrever, Maria Teresa Horta conversou sobretudo sobre a infância, a mãe, o pai, a família... De outra forma não poderia ser para uma mulher que acredita que somos a nossa génese ou que quem escreve tem de entender de onde vem. Ainda mais quando a escrita se confunde com o próprio ser e se diz: “Eu sou a minha poesia.”
Parabéns, no mês de maio completou 80 anos!
Nem me diga isso. Detesto fazer anos desde pequenina. Tenho uma fotografia, aos 3 anos, com a mão estendida: “Não quero!” E não é que o meu filho nasce exatamente como eu? Um dia fui dar com ele sentadinho numa escada, a chorar. “Magoaste-te?”, perguntei-lhe. “Não”, disse ele. “Não quero fazer anos!”

Porque é que não gosta?
Não gosto de festejar. Sou pouco de festejos, a não ser que seja pela liberdade. Estou sempre pronta para uma manifestação. Também gosto de festejar os aniversários dos meus netos e do Luís [o marido].

Nunca percebeu porquê?
Não, e fiz 17 anos de psicanálise. Nunca percebi porque me angustia desde pequenina. O meu pai perguntava-me porquê. E eu dizia: “Não quero. Não quero. Faz-me mal!”

Não houve uma festa de aniversário em que invertesse esse sentimento?
Talvez, na única festa que fiz a mim mesma. Mas começa logo por ser estranho. Fiz essa festa para me aproximar do amor da minha vida, o Luís. Logo que o vi achei-o tão bonito... Fiquei de imediato envolvida. Na primeira conversa que tivemos, depois de termos assistido a um filme, passámos a noite a discutir. Na altura, achava que gostar de alguém podia magoar muito. Era algo que já vinha das histórias do meu pai e da minha mãe.

Nessa altura já era casada...
Sim, casei aos 17 anos, para poder sair de casa. Atingia-se a maioridade aos 21 anos, mas, como os meus pais eram divorciados, eu seria maior aos 18. O meu pai, que era médico e professor de medicina, não queria que eu escrevesse ou não aceitava o que me levava a escrever. O nosso relacionamento foi sempre muito conturbado. Com a minha mãe foi diferente. Ela era linda de morrer e andou uma quantidade de anos a imitar as atrizes de Hollywood. Às vezes não sabia muito bem se a minha mãe era a Rita Hayworth ou se era ela própria. Lembro-me de o meu pai dizer, quando eu tinha 4 ou 5 anos: “Toma conta da tua mãe.” Foi sempre assim.

Não era muito pesado tomar conta da sua mãe?
Era. Ela era tão voadora. Tão bela. Tão difícil de alcançar. A minha mãe ou a cabeça da minha mãe era muito livre. Já bastante tempo depois do 25 de Abril, uma prima sua, da família Mascarenhas, comentou com ela: “Olha lá, então a tua filha Teresa é feminista?” A minha mãe percebeu logo que havia agressividade na pergunta e respondeu: “É, sim, e eu também era e acho que não sabia.” Isto, para mim, é verdade, embora o entendimento dela sobre feminismo fosse diferente do meu. Havia nela uma rebeldia muito grande em relação à situação da mulher. A minha mãe fazia tudo ao contrário.

Foi uma mulher muito corajosa. Saiu de casa do marido porque se apaixonou...
Sim. Foi.

Embora tivesse sido um grande sofrimento para si...
Sim, mas estive sempre do lado da minha mãe. Acompanhei-a muito. Ela teve grandes perturbações pós-parto. Era uma pessoa muito instável, e quanto mais deprimida ficava mais bonita parecia. Era uma coisa impressionante, perturbante. A minha mãe atravessa a minha poesia desde o primeiro livro até hoje.

Não está mesmo em todos os seus livros?
Está. Há duas coisas que estão sempre na minha poesia. A minha mãe e a poesia. No meu primeiro livro, eu já faço um poema à poesia. E há agora o apogeu disso no “Poesis”. Eu tinha de fazer este livro. Ficaria incompleta se não tivesse vivido para fazer este livro. Quando a minha mãe se foi embora, senti que ela me tinha abandonado. Foi como se houvesse uma tempestade dentro daquela casa... como se andasse tudo pelo ar, comigo, menina, a tentar agarrar-me às coisas, e o meu pai não tivesse feito nada para segurar a minha mãe. Já escrevi vários contos em que transformo o que senti naquele momento. Tudo voa, exceto a minha avó, a mãe do meu pai. A minha avó, que vivia connosco, e que é o grande esteio da minha vida.

Mas morre logo a seguir...
Sim, um mês depois.

Maria Teresa Horta na sua casa em Lisboa


Fica sem ter onde se agarrar?
Sim. Passei a ter medo de dormir sozinha à noite. A minha avó achou por bem trocar de quarto. Na noite em que mudou de quarto pedi-lhe para encostar a cama dela à minha. Tinha medo. Ela encostou-a e deu-me a mão. E eu acordei a meio da noite com a mão dela agarrada à minha. Estava fria.

Estava morta?
Estava. Foi difícil libertar-me da mão dela, porque tinha a mão muito gelada. Estava agarrada.

A sua avó não aparece tanto na sua escrita...
Está nas “Meninas”, por exemplo.

Mas não volta a ela muitas vezes. É um porto seguro?
É. Nunca tive dúvidas da minha avó. Ela é que me salva. A partir do dia em que ela morre, eu não choro nem falo. Fiquei muda. Ainda hoje não choro. Aprendi a não chorar. Isso torna as meninas pequeninas vulneráveis. Os dois esteios da minha vida, embora de maneiras diferentes, desaparecem no espaço de um mês. Fico com aquele senhor que chegava à noite, o meu pai. A história para trás é muito complicada... A minha mãe também foi criada pelo pai achando que a sua mãe estava morta. De repente, quando se casa, o meu pai recebe um telefonema de uma senhora que quer saber como está a Carlotinha, a minha mãe, dizendo, ao meu pai, que é a mãe dela. Como ele desliga logo a seguir, a minha mãe é obrigada a contratar um detetive para encontrar a mãe. Toda a vida julgara que era órfã de mãe. No bilhete de identidade tinha escrito “mãe incógnita”. Se há coisa menos incógnita é uma mãe.

Tinha ideia de que a sua mãe era da família da marquesa da Alorna?
E era, através do meu avô, o pai dela. O meu avô era um dos irmãos mais novos da família Mascarenhas, logo a minha mãe era sobrinha do conde da Torre. O meu avô conheceu a minha avó numa história estranha. Era solteiro e tinha uma relação com uma senhora que engravidou. Foi com ela fazer um aborto e, na sala de espera, conheceu a minha avó, uma rapariga linda de morrer, que também lá estava para fazer um aborto. Apaixonaram-se. Desfizeram tudo o que estava para trás e foram viver juntos. Da sua relação nasceram três crianças, uma delas é a minha mãe, que o meu avô regista como filhos de mãe incógnita. Um dia, porém, o pai dele, que era quem mandava nele, chama-o e anuncia-lhe que tem de ir buscar os filhos e casar-se com uma prima. E o meu avô vai a casa da minha avó buscar os meninos, deixando a minha avó aos gritos. Quando ele se casa, a minha mãe é colocada num colégio, onde passa a viver, a pensar que é órfã de mãe, até se casar aos 17 anos.

Essa história não foi um escândalo?
Não, porque ele era homem. Se fosse mulher era. Numa família aristocrática, como a minha, havia regras. Sempre gostei do meu avô e fiquei muito dececionada quando soube desta história. Quando ele regista a minha mãe como filha de mãe incógnita já está a pensar em retirar-lhe as crianças. Toda a vida a minha avó materna procurou os filhos.

Porque é que nunca usou o Mascarenhas da sua mãe?
Porque tenho um problema com a aristocracia. Foi a Leonor [e a escrita do livro sobre ela, “As Luzes de Leonor”] que me conciliou com esse lado da família. Pela primeira vez disse que ela era minha avó. Ela conseguiu que eu não tivesse vergonha de dizer que era Mascarenhas. Sinto-me filha do meu pai, que era de uma família pobre. Os Mascarenhas não trabalhavam.

A sua mãe casa por amor?
Sim. Conhece o meu pai num elétrico, num passeio com uma tia que pediu para fazer. Naquela altura, os elétricos eram novidade. Ele usava o elétrico para ir trabalhar. O meu pai era o médico rigoroso e honesto. Eles encontraram-se nesse elétrico e ficaram maravilhados. No dia seguinte, ele foi colocar-se à frente da casa dela. Foi uma coisa muito romântica. Uma descoberta. A única paixão do meu pai foi ela.

Porém, ela deixa de o amar...
Ainda hoje estou para saber o que se passou na cabeça da minha mãe. Primeiro, não tinha mãe. Depois, veio a saber que tinha, e ainda acaba por acompanhar a minha avó no final da sua vida. A minha mãe sempre precisou de ser amada. Ou, mais do que isso, de ser admirada.

Isso é muito claro no seu livro “Meninas”.
Pelos vistos, foi muito pouco amada. Há uma tia, a tia Luísa, que lhe dá afeto. Mas, quando essa tia morre, a minha mãe vai para o colégio, do qual só volta aos fins de semana. Em casa é muito mal recebida pela madrasta, que a odeia, porque ela lhe faz lembrar a outra. Um dia, tinha eu vinte e tal anos, à saída da casa de banho de um cinema, a minha mãe diz-me: “Com esta mania de tirar os anéis, ia deixando aqui a aliança do pai.” Pergunto-lhe: “A aliança do pai?” E ela responde: “Mas qual é que eu devia ter?” Eu disse-lhe: “A do meu padrasto!” Ela morreu com a aliança do meu pai. Ela pode ter saído de casa porque se sentiu pressionada, porque quando tentou acabar com o meu padrasto ele deu um tiro na cabeça à frente dela. A bala não o matou. Entrou por um lado e saiu pelo outro. Perante este ato romântico, ela não podia recuar. A verdade é que eu passo a minha vida a desculpar a minha mãe e a dizer que ela não podia ter feito de outro modo.

É curioso perceber que, à medida que a idade avança, se perde ou se gasta mais tempo a pensar na infância, nos pais...
Não sei como é com os outros. Comigo faz parte do meu imaginário, do meu imaginário poético. Não há nada perdido. Há tudo encontrado. Isto faz parte daquilo em que me tornei; e aquilo em que me tornei é feito do que resolvi ou não resolvi. A mãe é a nossa génese. É de onde partimos. Não dá para iludir. Fiz psicanálise durante 17 anos, e aquilo que nós somos passa pela nossa génese, pela nossa educação. Quando fiz psicanálise, foi com o intuito de saber quem era. A Catherine Clément, que teve e tem uma importância muito grande na minha vida, dizia a mesma coisa. Uma pessoa que escreve tem de entender de onde vem. Portugal era um país em que as mulheres que escreviam nem eram escritoras e raramente publicavam. Quando eu apareço, já é diferente. Existe a Natália Correia, a Fernanda Botelho, a Sophia de Mello Breyner Andresen... Mas elas ainda pertenciam a um lado obscuro.

Por isso é que começa por dizer que vai escrever, nem se imagina como escritora...
Costumo dizer que nasci na biblioteca do meu pai. A casa era pequenina, nos Soeiros, e o meu pai, que lia muito e era uma pessoa muito culta, tinha um escritório forrado a livros. Aquilo era o mundo para mim. Aos 12 anos já achava que a coisa mais maravilhosa do mundo era ser escritora. Custava-me a acreditar que havia escritoras num mundo tão mesquinho em relação às mulheres. A minha avó, que me ensinou a ler, era uma sufragista. Só o soube mais tarde, através da Maria Lamas, apesar de ir às reuniões com ela desde pequenina. Na altura, pensava que ia a casa de amigas. A minha avó morreu sem nunca ter dito uma palavra contra a minha mãe. Tanto que um dia o filho disse-lhe: “Afinal, a mãe é mãe dela ou é minha?” E ela responde: “Não se tira os filhos às mães, e chega de maus tratos às meninas.”

A Teresa só podia ser feminista...
Acho que sim. Aprendi a ler com a minha avó, mas de um modo muito caótico. Foi por isso que o meu pai resolveu colocar-me numa professora por volta dos meus 5 anos, e a professora ensinou-me a escrever em dez dias. Deixo de ser muda quando começo a escrever. A escrita era uma falta de expressão fundamental na minha vida. Resolvo escrever romances mal sei escrever. Comecei nos cadernos do meu pai, nos que ele não queria mais e onde deixava quase sempre no final, vá lá saber-se porquê, quatro páginas em branco. Mas os meus romances eram sempre amorais. Ainda tenho um desses textos na minha mão que a minha mãe guardou.

Essa perversidade manteve-se?
Acho que sim. Mais na ficção. Só escrevo poesia aos 14 anos. Faço um poema na mata do Buçaco. Para mim, a poesia era uma coisa linda. Achava muito estranho haver tão poucas poetisas publicadas. O meu pai não tinha uma mulher na estante do escritório dele.

Mas a sua avó tinha um livro da marquesa de Alorna...
A minha mãe tinha-o em cima da mesa, na salinha dela. Um dia fui perguntar à minha avó se havia escritoras. A minha mãe ouviu a conversa e disse: “Não gostas tanto daquela fotografia da tua avó que está no palácio [de Benfica]? Estás sempre a olhar para ela... Ela é escritora.” É aí que eu me apaixono pela Leonor. Há uma ligação muito grande na maneira de ser, na desobediência. Mas a coisa que é mais conivente entre mim e a Leonor é o papel da poetisa. A Leonor foi sempre a poetisa. Eu também sou as duas coisas ao mesmo tempo. Não sou a avó e a poetisa. Sou a avó poetisa. Não há separação. A Leonor também nunca a teve. Era ela e aquela desobediência que não a deixava. Às vezes, ela queria ser bem-comportada. Eu nunca o quis. Ela começa uma carta muito bem e, de repente, vai galopando e acaba a dizer as coisas mais inconcebíveis segundo as normas da época. Sempre teve a noção de que se podia prejudicar. Tentou controlar-se, mas o ser autêntico que ela foi sempre venceu. E aquilo que mais me caracteriza é a desobediência e a insubordinação.

Mas depois não se importa de tomar conta da casa, de engomar, cozinhar, lavar a loiça...
Não é verdade. Detesto. Faço-o porque não tenho dinheiro. Todas as coisas têm um preço. É a minha vida. Levar uma vida à risca, ter determinados princípios e não me esquecer de quem sou, em momento nenhum, tem custos. É das coisas de que mais me orgulho. Nunca fiz nada de que tenha vergonha. Há aqueles princípios de vida, de norma, de honestidade, de coerência... Isso é importante. Das coisas boas da minha vida é o meu filho, e é o Luís, que é o meu amor. O meu grande amor.

E como é que um amor se reinventa ao longo de 54 anos?
Não sei. Não faço ideia nenhuma. Reinventa-se. Hoje, quando olho para o Luís, ainda tenho o mesmo encantamento. É aquela coisa assim: “Eu não posso viver sem ti.” Ainda digo “amo-te” antes de adormecer. Acordo de noite para o ouvir respirar, cheirar... A paixão pode magoar, mas é tudo o que há de mais maravilhoso. Não era capaz de viver com nenhum homem que não fosse por paixão.

O seu primeiro casamento não foi por paixão?
Não. Foi por amizade. Era a única maneira de sair de casa. Dava-me muito mal com o meu pai, e onde quer que eu estivesse ele ia buscar-me. Um marido podia defender-me. Na altura, o meu padrasto fascista estava no Caramulo a tratar-se de uma tuberculose e a minha mãe tinha ido com ele. Pela segunda vez fui prescindida, embora a minha mãe tenha lutado por nós. Foi difícil, porque quando uma mulher saía de casa não tinha direito aos filhos.

Pode dizer-se que a sua mãe foi uma espécie de Anna Karenina?
Bastante. Sem aquele final trágico e maravilhoso. A minha mãe gostava demasiado de si própria para se suicidar. Gosto muito da Anna Karenina. Quando Flaubert diz: “A Madame Bovary sou eu”, é de facto verdade. São homens que escrevem sobre o que veem numa mulher. A minha mãe era uma mulher a sério. Não era uma mulher inventada pelos homens, embora eles também a inventassem. De vez em quando deparava-me com essas imagens da minha mãe inventadas pelos homens que eu sabia que não correspondiam ao que ela era. A minha mãe teve grandes problemas. Era muito romanesca, um figura literária, uma ficção. No Caramulo, descobriu o meu segundo padrasto e veio de lá com ele.

Escreveu muito sobre a sua mãe, mas nunca sobre essas peripécias...
“A Paixão Segundo Constança H.” tem muito dela. Tem muito de mim, mas sobretudo dela. Há aquela passagem na praia com os filhos, porque o meu desejo era que a minha mãe, em vez de ter ido com alguém, tivesse feito aquilo. Pegasse em nós três e fosse para uma praia solitária e estivesse connosco. Depois há a parte ficcional, que é a da amiga e a do homem, que não era o meu pai. O meu pai gostava demasiado dele próprio, tinha um ego enorme.


O seu pai é o homem de “Ema”?
Sim, além do escritório que está lá, além da austeridade... O meu pai não era violento, mas usava a sua autoridade. Se alguém mandava naquela casa era ele.


Se não fosse a Leonor, acha que escrevia?
Sim. Já tinha começado. Acredito em fadas e acho que tive uma fada. Quando nasci, ela disse apenas duas coisas: “Esta menina vai ter olhos azuis e vai escrever poesia.” Depois esqueceu-se de mim. Eu nunca existiria sem livros. Era uma menina muito frágil fisicamente. E ainda sou. A minha força está na minha cabeça, na minha vontade. Com a Leonor chega-me o garante de que as mulheres são realmente escritoras e que até há na família uma mulher que escreve, que só o meu pai é que não tem livros escritos por mulheres nem poesia nas estantes, além do Camões, que amo. A poesia aparece mais tarde. A poesia sou eu. A ficção não. Na ficção introduzo-me, construo, e é um deleite, e enfio toda a minha poesia lá dentro. Construo da parte de dentro.

Em “Poesis” escreve: “Eu sou a minha poesia.”
Sim, eu sou a minha poesia, sou exatamente a minha poesia. Não faço o género da escritora que diz: “Ah, eu escrevo, mas é um sofrimento...” Não, é uma alegria.

Diz: “Serei sempre poetisa, não interessa a minha idade.”
Sim, repare, na poesia não interessa nada a idade. Eu sou sobretudo a minha poesia. A poesia, a vida, o mundo dão-me tanto prazer. Tive tanto gosto disto tudo que não interessa a idade. Não me sinto menos. Não vejo nada mais esvaído. Nada me dá tanto prazer como tudo me tem dado. O prazer físico, porque quando escrevo tenho prazer de escrever.

É erótico o ato de escrever?
É! Sempre erótico. Exceto os poemas, que me dão prazer mas que têm a ver com o lado político e com a resistência fascista. Que têm a ver com a sociedade, com os outros... e todo esse lado que me fez fazer “As Mulheres de Abril”, que é aquele livro em que me reconheço menos mas que não me arrependo nada de ter escrito.

O penúltimo poema de “Poesis” chama-se ‘Sem Vassalagem’...
Porque eu vivi sem vassalagem. E termino o livro, ou lacro-o, com ‘Epopeia’: “Esta é a minha epopeia/ feita de poesia/ perdimentos e palavras/ sem deuses sem batalhas/ sem heróis nem lágrimas/ sem o bronze das armas/ Poema a poema a poema/ paixão após fulgor após beleza/ na sua dimensão mais ávida.”

Cumpriu dois dos seus grandes sonhos, “A Dama e o Unicórnio” e “As Feiticeiras”...
Sim, mas ainda estou à espera que o Papa Francisco peça desculpa às mulheres. Já alguma vez ouviu dizer que o primeiro genocídio foi contra as mulheres? A Igreja já pediu desculpa às crianças, mas não às mulheres... Houve sítios onde não se safou uma única mulher. E este livro, “Poesis”, não foi uma promessa feita. Tenho uma obra. Está feita. Eu quero que as pessoas saibam que não se pode dizer: esta é a Teresa Horta e esta é a poesia dela. Quem gostar da obra da Teresa Horta gosta de mim através da minha obra. A minha identidade é poética. Está aqui. Para mim, a poesia é esta correria, esta alegria...

Já fez tudo o que tinha para fazer?
Não. Estou a fazer outro livro neste momento. Escrevo todos os dias três a quatro poemas. Acordo de noite com a poesia, e tenho de me levantar e escrever para não a perder, mas depois já não consigo adormecer. No dia seguinte, as frases ficam em cima das frases, versos e versos, já não me entendo. Escrevo no colo, os poemas andam aqui pela casa. Não uso mesa, máquina, computador... Quando os perco, entro em perfeita loucura. É como se me tirassem um pedaço, um pedaço do coração, e já não respiro. Fica tudo aterrado cá em casa. Fico doida. É como se fosse o poema mais maravilhoso que já escrevi e mais nenhum poeta o teria escrito. Procuro debaixo das coisas, viro tudo... Quando o encontro, pronto, já não ligo mais. Isto é essencial na minha vida, esta é a minha vida, mas levanto-me cedo, cozinho, lavo, engomo...

in Expresso
05.08.2017 às 9h00
Entrevista
Fotos


Lola