Tua Cantiga
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir
Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz
Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar
Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair
Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho, a te abraçar
Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou
Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar
E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti
https://www.youtube.com/watch?v=dk8arhNQta0
Reflexões acerca da canção maldita...
Chico Buarque, o perigoso machista
Os estilhaços dessa literalidade idiota
chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum
outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo.
Francisco Buarque de Hollanda decidiu apresentar o seu próximo disco com o
lançamento de um tema chamado Tua Cantiga. O que ele foi fazer. Tua Cantiga, história singela de um homem de família perdidamente apaixonado por outra
mulher, tem lá pelo meio os seguintes versos: “Quando teu coração suplicar/ Ou
quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.”
Foi o que bastou para o artista que em tempos foi classificado como
“unanimidade nacional” ser acusado de estar a promover em 2017 o velho machismo
de 1977. Escreveu Luciano Trigo no Globo: “Chico parece preso a uma visão da
mulher – e da relação homem-mulher – dos anos 70 do século passado (…), cujo
romantismo se baseava na desigualdade e na assimetria de papéis entre homens e
mulheres.”
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Parece que a mulher trabalhadora brasileira com menos de 30 anos já não vai
em conversa de amores assolapados, e que proferir frases como “na nossa casa
serás rainha” (também consta da letra) é uma ofensa para qualquer mulher
devidamente empoderada. “Largar mulher e filhos? Que cafajestada é essa?”,
pergunta Luciano Trigo. A produtora Flávia Azevedo, escrevendo no HuffPost
Brasil, concorda: “Essa mulher que ele evoca, não sou eu. Nem a que somos nem a
que queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar,
essa que goza ao ouvir ‘largo mulher e filhos’.” A obsessão com a linguagem por
parte da esquerda mais progressista está a ter esta consequência estranhíssima:
torna o seu discurso muito próximo do da direita conservadora. Mesmo um
defensor de Chico Buarque disse que Tua Cantiga era uma “canção sobre dois
adúlteros”, expressão que já não ouvia desde os tempos em que o arcebispo de
Braga tomava posições públicas sobre O Império dos Sentidos.
Chico Buarque já respondeu à polémica, com a inteligência e o humor que
Deus lhe deu, reproduzindo no seu Facebook um diálogo que diz ter “entreouvido
na fila de um supermercado”: “Será que é machismo um homem largar a família
para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a
amante.” A piada é boa, mas não chega a ser verdadeira. Ficar com a família e a
amante não é machismo, tal como ficar com a família e o amante não é feminismo
– é apenas traição. E a traição, até há bem pouco tempo, era algo que somente
dizia respeito aos envolvidos. Contudo, num mundo onde as palavras estão sob
uma vigilância que já não se via desde os tempos da Inquisição, não só uma
simples canção ficcional passa a ser um manifesto machista, como a argumentação
alegadamente “feminista” e “empoderada” é ridiculamente parecida com a do
Catecismo da Igreja Católica.
Os grupos oprimidos e seus defensores, SJW (Social Justice Warriors) para
os amigos, estão diariamente a bombardear o muro que separa as palavras dos actos,
fazendo equivaler uns e outros. Que isto seja típico de uma mentalidade
totalitária parece não lhes passar pela cabecinha. Os estilhaços dessa
literalidade idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por
entender como nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum
homem está a salvo. Antigamente, eram só os cristãos que iam à missa pedir
perdão por pensamentos, palavras, actos e omissões. Os novos sacerdotes do
politicamente correcto não querem menos do que isso – exigem que nos ajoelhemos
aos pés dos infinitos deuses dos SJW e peçamos perdão não só pelo que fizemos,
mas também pelo que dissemos, pensámos e cantámos no duche.
In Observador
joao miguel tavares
22 de agosto de 2017, 6:06
Chico no país das caravanas
Chico Buarque tem em Caravanas mais
uma prova do seu génio musical. O resto são cantigas.
Caravanas
Chico
Buarque, uma voz no mundo de Trump, dos refugiados e do terror
universalizado
Eis, finalmente, desvendado o novo disco (e 23.º) de Chico Buarque: Caravanas chega
sexta-feira às lojas, físicas e virtuais, e nas suas nove canções mantém
elevado o padrão a que o autor nos habituou. Deixando de lado as polémicas
patetas (e falsamente morais) que rodearam Tua cantiga, lembrando
as que no passado, com extrema ignorância, apontavam Mulheres de Atenas como
sendo baseada em estereótipos machistas (!), Caravanas cruza
os dois territórios onde Chico se aventurara nos discos anteriores: o das
geografias urbanas (As Cidades, 1998; Carioca, 2006) e o das
geografias e cicatrizes do amor (Chico, 2011). Começa por estas últimas,
aliás, numa sequência notável.
Primeiro Tua cantiga. A música, de Cristóvão Bastos, inspira-se
em Bach e Chico cita na letra, deliberadamente, um soneto de Shakespeare,
escrevendo: “Ou estas rimas/ Não escrevi/ Nem ninguém nunca amou”. A discussão
que Tua cantiga provocou foi, no entanto, muito menos erudita,
apontando as juras de amor eterno do protagonista da canção (ao ponto de deixar
mulher e filhos, tornando a amada “rainha” do novo lar) como a glorificação de
um machismo antigo. Pois ouçam Blues para Bia e terão novo
motivo para discussões idiotas: um homem, apaixonado por uma mulher em cujo
coração “meninos não têm lugar”, diz que “nada o amofina”, nem mesmo isso: “Até
posso virar menina/ Pra ela me namorar.” Aqui, o blues, presente em vários
momentos da carreira de Chico; na anterior, lundu e Bach! Completando a
trilogia, A moça do sonho, uma linda canção escrita em 2001 (com
Edu Lobo) para a peça Cambaio e que Chico não gravara. Nela está
presente outro elemento preponderante no disco: o tempo. O tempo e a infância.
“Um lugar deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados/ Vão
parar.”
Esse mesmo tempo vai surgir em Jogo de bola (“É ver o
próprio tempo num relance/ E sorrir por dentro”) e também em Massarandupió,
onde Chico, autor da letra, fala da infância de outro Chico bem mais novo,
autor da música, uma valsa quase infantil (“Lembrar a meninice é como ir/
cavucando de sol a sol”). O outro Chico é Brown, neto de Buarque e filho do
casal Helena Buarque e Carlinhos Brown.
No tema seguinte, Dueto (de 1979, que Chico só cantara em
projectos alheios, com Nara Leão, Zizi Possi ou Paula Toller), surge outra
neta, filha do mesmo casal e irmã de Chico Brown: Clara Buarque. O dueto
avô-neta, feliz na concretização, lembra, pela chama que o ilumina, os tocantes
duetos de Tom Jobim com cantoras como Elis Regina ou Miúcha (por sinal, irmã de
Chico Buarque).
E vão seis, das nove canções que o disco oferece. A sétima é outro achado,
um bolero escrito (com Jorge Helder) para um disco de Omara Portuondo que não
chegou a ser gravado e que ganha aqui outro peso e significado: Casualmente.
É Havana (e Cuba), a contas com o seu passado (de novo o tempo), envolta numa
bruma nostálgica que não se dissipará até a um reencontro: “Regressarei, oxalá/
algum dia a la ciudad”. Mescla de idiomas a lembrar outros de Chico (Joana
Francesa, por exemplo) e citando um autor cubano, Sílvio Rodriguez, numa
glosa de Pequeña serenata diurna, que Chico gravou em 1978: “Hasta
el mar de La Habana es lo mismo, pero/ No es igual/ No es igual”.
A oitava canção, Desaforos, volta aos amores mas pelo seu
avesso, num samba-canção bem torneado e de inspiração clássica. Por fim, As
caravanas joga com estigmas e medos do presente (as favelas, os
refugiados) e o peso do passado, o tempo outra vez: “E essa zoeira dentro da
prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar”. Sim, a
escravatura. Frente ao racismo actual: “Com negros torsos nus deixam em
polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de
volta/ O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné.”
É a voz de Chico num mundo a virar-se ao contrário, no mundo de Trump, dos
refugiados e do terror universalizado.
Chico Buarque, 73 anos feitos em Junho, com uma expressividade vocal a que
a idade foi juntando o grão do tempo (sempre ele), tem em Caravanas mais
uma prova do seu génio musical. Juntemo-nos lucidamente a esta caravana, que o
resto são cantigas.
In Publico
Nuno Pacheco
22 de agosto de 2017, 18:14 actualizado a 23 de agosto às 18:29
Quem não sente a arte como desconstrução do real?
Quem não entende a figura de estilo (hipérbole, entre outras) na arte?
Quem não entende o ouvinte como interpretante da arte?
Quem não confere à arte uma polissemia?
Quem não é capaz de ultrapassar a literalidade da arte?
Quem nunca sentiu saudade de um amor profundamente arrebatador como este?
Venham CARAVANAS de cantigas...
que elas não serão somente
as tuas cantigas, Chico Buarque!