quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Tua Cantiga




Tua Cantiga


 
Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos
Vou te seguir

Na nossa casa
Serás rainha
Serás cruel, talvez
Vais fazer manha
Me aperrear
E eu, sempre mais feliz

Silentemente
Vou te deitar
Na cama que arrumei
Pisando em plumas
Toda manhã
Eu te despertarei

Quando te der saudade de mim
Quando tua garganta apertar
Basta dar um suspiro
Que eu vou ligeiro
Te consolar

Se o teu vigia se alvoroçar
E, estrada afora, te conduzir
Basta soprar meu nome
Com teu perfume
Pra me atrair

Entre suspiros
Pode outro nome
Dos lábios te escapar
Terei ciúme
Até de mim
No espelho, a te abraçar

Mas teu amante
Sempre serei
Mais do que hoje sou
Ou estas rimas
Não escrevi
Nem ninguém nunca amou

Se as tuas noites não têm mais fim
Se um desalmado te faz chorar
Deixa cair um lenço
Que eu te alcanço
Em qualquer lugar

E quando o nosso tempo passar
Quando eu não estiver mais aqui
Lembra-te, minha nega
Desta cantiga
Que fiz pra ti

Chico Buarque




https://www.youtube.com/watch?v=dk8arhNQta0



Reflexões acerca da canção maldita...

Chico Buarque, o perigoso machista
Os estilhaços dessa literalidade idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo.

Francisco Buarque de Hollanda decidiu apresentar o seu próximo disco com o lançamento de um tema chamado Tua Cantiga. O que ele foi fazer. Tua Cantiga, história singela de um homem de família perdidamente apaixonado por outra mulher, tem lá pelo meio os seguintes versos: “Quando teu coração suplicar/ Ou quando teu capricho exigir/ Largo mulher e filhos e de joelhos vou te seguir.” Foi o que bastou para o artista que em tempos foi classificado como “unanimidade nacional” ser acusado de estar a promover em 2017 o velho machismo de 1977. Escreveu Luciano Trigo no Globo: “Chico parece preso a uma visão da mulher – e da relação homem-mulher – dos anos 70 do século passado (…), cujo romantismo se baseava na desigualdade e na assimetria de papéis entre homens e mulheres.”
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Parece que a mulher trabalhadora brasileira com menos de 30 anos já não vai em conversa de amores assolapados, e que proferir frases como “na nossa casa serás rainha” (também consta da letra) é uma ofensa para qualquer mulher devidamente empoderada. “Largar mulher e filhos? Que cafajestada é essa?”, pergunta Luciano Trigo. A produtora Flávia Azevedo, escrevendo no HuffPost Brasil, concorda: “Essa mulher que ele evoca, não sou eu. Nem a que somos nem a que queremos ser. Essa que precisa ser salva, que sonha com o reino do lar, essa que goza ao ouvir ‘largo mulher e filhos’.” A obsessão com a linguagem por parte da esquerda mais progressista está a ter esta consequência estranhíssima: torna o seu discurso muito próximo do da direita conservadora. Mesmo um defensor de Chico Buarque disse que Tua Cantiga era uma “canção sobre dois adúlteros”, expressão que já não ouvia desde os tempos em que o arcebispo de Braga tomava posições públicas sobre O Império dos Sentidos.
Chico Buarque já respondeu à polémica, com a inteligência e o humor que Deus lhe deu, reproduzindo no seu Facebook um diálogo que diz ter “entreouvido na fila de um supermercado”: “Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.” A piada é boa, mas não chega a ser verdadeira. Ficar com a família e a amante não é machismo, tal como ficar com a família e o amante não é feminismo – é apenas traição. E a traição, até há bem pouco tempo, era algo que somente dizia respeito aos envolvidos. Contudo, num mundo onde as palavras estão sob uma vigilância que já não se via desde os tempos da Inquisição, não só uma simples canção ficcional passa a ser um manifesto machista, como a argumentação alegadamente “feminista” e “empoderada” é ridiculamente parecida com a do Catecismo da Igreja Católica.
Os grupos oprimidos e seus defensores, SJW (Social Justice Warriors) para os amigos, estão diariamente a bombardear o muro que separa as palavras dos actos, fazendo equivaler uns e outros. Que isto seja típico de uma mentalidade totalitária parece não lhes passar pela cabecinha. Os estilhaços dessa literalidade idiota chegaram agora às canções do pobre Chico, antes amado por entender como nenhum outro a condição feminina. Se até ele é machista, nenhum homem está a salvo. Antigamente, eram só os cristãos que iam à missa pedir perdão por pensamentos, palavras, actos e omissões. Os novos sacerdotes do politicamente correcto não querem menos do que isso – exigem que nos ajoelhemos aos pés dos infinitos deuses dos SJW e peçamos perdão não só pelo que fizemos, mas também pelo que dissemos, pensámos e cantámos no duche.


In Observador
 joao miguel tavares
                                                                                                     22 de agosto de 2017, 6:06
Chico no país das caravanas
Chico Buarque tem em Caravanas mais uma prova do seu génio musical. O resto são cantigas.
Caravanas 

Chico Buarque, uma voz no mundo de Trump, dos refugiados e do terror universalizado 

Eis, finalmente, desvendado o novo disco (e 23.º) de Chico Buarque: Caravanas chega sexta-feira às lojas, físicas e virtuais, e nas suas nove canções mantém elevado o padrão a que o autor nos habituou. Deixando de lado as polémicas patetas (e falsamente morais) que rodearam Tua cantiga, lembrando as que no passado, com extrema ignorância, apontavam Mulheres de Atenas como sendo baseada em estereótipos machistas (!), Caravanas cruza os dois territórios onde Chico se aventurara nos discos anteriores: o das geografias urbanas (As Cidades, 1998; Carioca, 2006) e o das geografias e cicatrizes do amor (Chico, 2011). Começa por estas últimas, aliás, numa sequência notável.
Primeiro Tua cantiga. A música, de Cristóvão Bastos, inspira-se em Bach e Chico cita na letra, deliberadamente, um soneto de Shakespeare, escrevendo: “Ou estas rimas/ Não escrevi/ Nem ninguém nunca amou”. A discussão que Tua cantiga provocou foi, no entanto, muito menos erudita, apontando as juras de amor eterno do protagonista da canção (ao ponto de deixar mulher e filhos, tornando a amada “rainha” do novo lar) como a glorificação de um machismo antigo. Pois ouçam Blues para Bia e terão novo motivo para discussões idiotas: um homem, apaixonado por uma mulher em cujo coração “meninos não têm lugar”, diz que “nada o amofina”, nem mesmo isso: “Até posso virar menina/ Pra ela me namorar.” Aqui, o blues, presente em vários momentos da carreira de Chico; na anterior, lundu e Bach! Completando a trilogia, A moça do sonho, uma linda canção escrita em 2001 (com Edu Lobo) para a peça Cambaio e que Chico não gravara. Nela está presente outro elemento preponderante no disco: o tempo. O tempo e a infância. “Um lugar deve existir/ Uma espécie de bazar/ Onde os sonhos extraviados/ Vão parar.”

Esse mesmo tempo vai surgir em Jogo de bola (“É ver o próprio tempo num relance/ E sorrir por dentro”) e também em Massarandupió, onde Chico, autor da letra, fala da infância de outro Chico bem mais novo, autor da música, uma valsa quase infantil (“Lembrar a meninice é como ir/ cavucando de sol a sol”). O outro Chico é Brown, neto de Buarque e filho do casal Helena Buarque e Carlinhos Brown.
No tema seguinte, Dueto (de 1979, que Chico só cantara em projectos alheios, com Nara Leão, Zizi Possi ou Paula Toller), surge outra neta, filha do mesmo casal e irmã de Chico Brown: Clara Buarque. O dueto avô-neta, feliz na concretização, lembra, pela chama que o ilumina, os tocantes duetos de Tom Jobim com cantoras como Elis Regina ou Miúcha (por sinal, irmã de Chico Buarque).
E vão seis, das nove canções que o disco oferece. A sétima é outro achado, um bolero escrito (com Jorge Helder) para um disco de Omara Portuondo que não chegou a ser gravado e que ganha aqui outro peso e significado: Casualmente. É Havana (e Cuba), a contas com o seu passado (de novo o tempo), envolta numa bruma nostálgica que não se dissipará até a um reencontro: “Regressarei, oxalá/ algum dia a la ciudad”. Mescla de idiomas a lembrar outros de Chico (Joana Francesa, por exemplo) e citando um autor cubano, Sílvio Rodriguez, numa glosa de Pequeña serenata diurna, que Chico gravou em 1978: “Hasta el mar de La Habana es lo mismo, pero/ No es igual/ No es igual”.
A oitava canção, Desaforos, volta aos amores mas pelo seu avesso, num samba-canção bem torneado e de inspiração clássica. Por fim, As caravanas joga com estigmas e medos do presente (as favelas, os refugiados) e o peso do passado, o tempo outra vez: “E essa zoeira dentro da prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar”. Sim, a escravatura. Frente ao racismo actual: “Com negros torsos nus deixam em polvorosa/ A gente ordeira e virtuosa que apela/ Pra polícia despachar de volta/ O populacho pra favela/ Ou pra Benguela, ou pra Guiné.”
É a voz de Chico num mundo a virar-se ao contrário, no mundo de Trump, dos refugiados e do terror universalizado.
Chico Buarque, 73 anos feitos em Junho, com uma expressividade vocal a que a idade foi juntando o grão do tempo (sempre ele), tem em Caravanas mais uma prova do seu génio musical. Juntemo-nos lucidamente a esta caravana, que o resto são cantigas. 
In Publico
Nuno Pacheco
22 de agosto de 2017, 18:14 actualizado a 23 de agosto às 18:29

Quem não sente a arte como desconstrução do real?
Quem não entende a figura de estilo (hipérbole, entre outras) na arte?
Quem não entende o ouvinte como interpretante da arte?
Quem não confere à arte uma polissemia?
Quem não é capaz de ultrapassar a literalidade da arte?
Quem nunca sentiu saudade de um amor profundamente arrebatador como este?

Venham CARAVANAS de cantigas... 
que elas não serão somente
 as tuas cantigas, Chico Buarque!



                                              Lola