sábado, 11 de novembro de 2017

Conto de Natal


Diana - 1984/2007

Um Natal de nome DIANA
2016

-"Mãe, vem buscar-me à estação de Ovar?"
Ainda ecoam na minha memoria as palavras da minha filha num dos últimos dias de Novembro, antecipando um fim de semana que iria ser (porque não?) como tantos outros de alegre e tranquila convivência entre nós e os animais que, surpreendentemente, a esperavam cada sexta feira que regressava da Universidade de Aveiro!
 -"Mãe, vem buscar-me a casa em Aveiro?"
Chove torrencialmente e  ela justifica a impossibilidade de chegar à estação e pede um pouco mais! Sabe que desde há muitos anos a mãe está sempre atenta, sempre disponível para os filhos, nomeadamente para ela que tem um olhar doce de menina primeira na minha vida de maternidade!
É Novembro! Estamos quase no final do mês e é natural o nosso cansaço e a vivência brilhante do Natal que se aproxima e dos mimos que, deliciosamente, se trocam entre gestos de aparente (des)agrado e de muita, muita satisfação e doce gratidão! Curiosamente o Natal foi sempre passado em família, na casa dos avos paternos... que isto de festas no inverno frio sabe bem o aconchego existencial da experiência dos mais velhos!
E assim se passava uma noite sempre adoçada pelos bolos que compunham a mesa ao mesmo tempo que os mais pequenos não viam a hora da distribuição das prendas...pois o Pai Natal mais que povoar o imaginário dos miúdos era agora a figura ternurenta e bochechuda que em porcelana ou barro tosco enfeitava cantos e recantos da sala, coloridamente, decorada pela avô!
Aquele era, porem, um Natal diferente...muito, muito diferente!
Eu sabia desde que os médicos, um mês antes, de forma humana mas sem rodeios e, após um exame localizado, me disseram, nos corredores do Hospital de Santo António:
- "E muito grave..só um milagre!"
- "Doutor: quanto tempo?, perguntei eu na minha solidão anestesiada pelo entardecer sombrio de uma relação que, sendo incondicional é, acima de tudo, inquebrantável!
 - "Três a seis meses!"
- "Vai sofrer?"
- Não...adormece!"
De modo inexplicável fiquei serenamente repousada num momento perfurante!
Porquê? A partir desse momento iniciei a abordagem do tempo de forma inversa: já não olhava os dias de uma forma cronologicamente neutra ...mas sim de um colorido esperançado: cada dia que passava era mais um que vivia com a Diana e isto se a linguagem não consegue expressar na sua completude, o eu tornado mãe sentia-o enternecidamente!

Tivera-a durante vinte e dois anos comigo! Era muito feliz na nossa relação de muito mais que amigas mutuamente interessadas e interessantes e agora a vida tratava amargamente de castrar a minha existência maternal com a proximidade de uma separação que a ciência me explicou ser impossível evitar com sucesso!
O dia quente anoitece nos braços de uma festa de consoada em casa dos avos paternos! Com esmerado cuidado ajudo a Diana a entrar no carro para todos chegarmos à ceia que decorre normalmente a não ser os mais pequenos que fazem um bocadito de barulho mas que ela, apesar de exausta e sem grandes forças físicas, sorri ...porque afinal são miúdos e ela compreende muito bem as suas ansiedades!
 Regressamos!
Já em casa ela desabafou: "este ano quase todos me deram pijamas...e temos de ir ao Porto comprar a tua prenda!" A minha filha, nunca se esquecia de trazer uma prendinha que fosse no aniversario e natal para cada um de nos! Sorria sempre que nos presenteava com algo que escolhia de acordo com a gestão do dinheiro que mensalmente lhe depositava na conta! Simples no vestir, gostava de roupa preta que combinava com um ou outro agasalho rosa claro ou azul bebe como os seus olhos expressivos e transparentes!
O Natal que foi o ultimo dela e meu .... há muito que se esvaziou!
A 12 de Janeiro de 2007 eu senti no intimo do meu ser a amargura gelada de ver partir um filho! Eu que, professora de Filosofia, tantas e tantas vezes tinha questionado com os meus mochinhos (alunos) a inevitabilidade da morte, a vida como tempo e espaço entre o nascer e o perecer, o carácter pessoal e intransmissível do morrer e o facto de nunca se morrer na primeira pessoa... pois morremos sempre para os outros e não para nos! Agora era eu a necessitar, mais do que ninguém, de olhar à volta e gritar: PORQUÊ?
Não sei... no dia da despedida não despreguei o olhar ao longo do seu traje académico que a vestiu e do qual ela tanto gostava! Estava uma tarde de sol brilhante e eu ia passando pelo meu pensamento alguns dos bons momentos que passamos juntas ou mesmo quando, no escritório, estudavamos as "nossas" matérias e ela me falava do ADN da minhoca o que eu achava estupidamente engraçado ...como é que um bichito como a minhoca tinha a cadeia de ADN de si tão complexa!
Dou-lhe a mão na igreja! Não me separo nem um minuto da sua carita que coloco entre as minhas mãos! Na entrada uma voz de uma pureza cristalina cantou, a meu pedido "Avé Maria" de Shubert,  já que um dia tínhamos combinado que seria a musica de entrada no momento do seu casamento! Não pode ser...foi neste dia!
Na majestosa igreja que nos acolhe para  a acarinhar pela ultima vez e,  no único momento que me afasto um pouquinho do seu rosto, passeio o olhar pelo lado esquerdo da ala lateral e... demoro-me um instante num anjo moreno vestido de azul, aos quadradinhos... que, por certo ela me enviou para me ajudar a viver a SAUDADE que doravante me irá acompanhar!
Nesse e "No dia seguinte ninguém morreu" como inicia José Saramago a sua obra "As intermitências da Morte" que, curiosamente, a Diana me oferecera no Natal anterior e que continua na mesinha de cabeceira, juntinho de mim ...porque ainda não passei da primeira pagina! E não será, certamente, por falta de tempo!
A Florista disse-me, mais tarde,  que nesse dia fechou à hora de almoço...não tinha mais flores! Também eu não tinha nada...nem lágrimas, nem palavras, nem sequer lamentos!

Hoje estou serenamente tranquila! Se fisicamente estamos, forçadamente, separadas, tenho de confessar que humanamente me sinto feliz! Porquê? Porque esteve envolvida numa repousante viagem de partida e, sobretudo, porque sinto que é preferível o caminho de forma digna ao de tê-la sofrendo egoisticamente aqui!
A vida e o seu sentido muda a nossa mundividência!  Há que continuar lutando por aqueles que ficam junto de nos! Não sei bem porquê,  mas acredito que um dia nos encontraremos de novo, quem sabe..numa outra dimensão e ai sim vai haver Natal de encontro...e beijinhos de aconchego nesta dor que não tendo nome (porque não é orfandade),  não deixa de ser, irremediavelmente, a  perda maior!
Dez anos de SAUDADE!
Eu continuo aqui, de pé, integra e inteira sorrindo para as estrelas e fruindo aquilo que o mundo tem de belo...e, sobretudo, de sublime! Em dias de  agradável amanhecer gosto de me envolver com o MAR num abraço de corpo inteiro que há muito, eu e ELE sabemos de cor!
Não provei o sabor da revolta nem a cedência ao conformismo ininteligível! Os alunos e a escola continuam a ser um espaço e tempo de afectos que não se podem reduzir à época do Natal! O Outro deve e tem de ser  a nossa prioridade e o CUIDADO um imperativo do ser humano em busca da dignidade da PESSOA que renasce na vivência saudável e continuada dos valores éticos! E, por vezes, dou comigo a pensar...
Haverá Natal no céu?
Lola - Mãe



Nota Biográfica

Rosa Sousa ou LOLA como é tratada pelos familiares e alunos, nasceu em 1957, no Porto. Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto desde Julho de 1981, é mestre em Filosofia da Educação pela mesma universidade desde Abril de 2004. Professora de Filosofia na Escola Secundária de Arouca é autora de dois blogues: 
" Lola e a Filosofia", dirigido ao apoio dos alunos e "O Mar e a Filosofia" onde revela um carácter mais pessoal,  intimista e apaixonante. Neste ano letivo está a desenvolver um projeto de “Filosofia para crianças” com alunos dos 1° ano, uma experiência que pretende  continuar no sentido de contribuir para o desenvolvimento de um pensamento livre e autónomo! Curiosa, exigente, tolerante, atenta, interessada, cuidada, inconformada, comprometida e empenhada adora ler, escrever, viajar, conversar, ouvir musica...e demora-se com a obra de Kant e com o colorido silêncio do MAR! O Abraço é a manifestação de afecto que mais a encanta e no qual gostaria de parar o tempo!



                                            Lola