Faz-se manhã de um frio
suave que, por agora, não me vai permitindo esfriar as emoções do Outono!
Como habitualmente, corro em direcção à escola pelo caminho de pedritas
geometricamente desalinhadas que conheço e saboreio desde a infância! Pelo
carreirinho vou envolvendo, na minha já adultez, a criança de bibe e sandálias
de pele amarelecida pelo uso, que tantas vezes se foi perdendo em brincadeiras
no campo do avó Manel!
Que saudade desse tempo
de ingenuidade permanente, de sorriso constante, de vivências verdejantes
anoitecidas pelo crepitar da lenha na lareira escura ladeada pelo forno em que
a avó Maria fazia o pão para o sustento da casa.
Os meus avós maternos
sempre foram uma referência afectiva para mim, por isso nas férias vinha sempre
para a aldeia respirar um pouco do ar do campo e ver os animais de que eu tanto
gosto! O meu avô Manel aproveitava, sorrateiramente, o momento de um beijo ou
abraço para esfregar a sua barba branca na minha carita aveludadamente morena;
a minha avó Maria guardava para mim, sempre no bolso do seu avental de chita,
uma mão cheia de nozes que me dava para eu ir comendo “sem ninguém ver”.
O que eu mais gostava
eram as férias grandes e os meses que passava comendo fruta e brincando com os
gatos lá de casa que, imprevisíveis e matreiros não perdiam a oportunidade me
arranhar em momentos de desentendimento infantil! Lembro-me de um gato cinzento
e outro preto que vagueavam pela casa nunca ultrapassando a porta de acesso aos
quartos que quase só se abria à noite para todos se recolherem, logo que o dia
beijava a noite, porque a vida do campo, não tendo horários inicia-se muito
cedo, na tal madrugada de que só os portugueses sabem o significado!
Não sei porquê...ou
talvez até nem seja difícil descobrir motivos, mas os meus pais nunca me
deixaram passar o Natal na aldeia, "porque era a festa da família" e,
deste modo, a minha presença na ceia de Natal era necessária até porque
...éramos quatro à mesa!
O meu pai tornava essa
noite um pouco diferente! O velhinho, mas muito bem conservado, rádio Schaub
Lorenz fazia entoar, solenemente pela casa, musica clássica e os quatro lá
iniciávamos a ceia composta sempre do tradicional bacalhau e dos doces simples
que a minha mãe começava a confeccionar pela manhã e desde esse momento, para
mim era a alegria de "rapar" as sobras das massas dos bolos que a
gulodice de menina não deixava escapar!
Noite de Natal, era hora
de ocupar o lugar na mesa! Os mesmos lugares de sempre pois a minha mãe,
verdadeira mulher de garra era, no entanto, intransigente na cedência a muitas
mudanças ao sabor dos apetites dos filhos e começava-se "a comer"
todos ao mesmo tempo que ali em casa não era "uma pensão" e
muito menos nessa noite!
Se para os meus pais
essa era a noite de família pois até comíamos na sala o que por norma não
acontecia, pois era a cozinha o espaço habitual das refeições para que a sala
estivesse sempre limpa...no caso de vir alguém.... para mim e para o meu irmão
era a noite das surpresas do Pai Natal!
Sozinhos e em segredo
começávamos uns dias antes a tentar adivinhar a prendinha que era colocada no
sapatito de cada um de nos posto em cima do fogão e bem na direcção da chaminé!
Não conhecíamos prendas grandes e caras e, por isso mesmo, uma lembrança útil
seria o suficiente para mim e para o meu irmão um carrinho colorido que fazia as delicias
do soalho envernizado pela minha mãe de tempos a tempos! Sim, que a minha mãe
era uma mulher esmerada nas lides da casa e nunca gostou que a desarrumação da
casa fosse uma constante por mais que uma hora, se tanto...
Foi precisamente num
destes natais da minha infância que eu desejei muito ter uma caneta de tinta
permanente que alguns dos meus colegas de sala de aula já tinham e que eu
esperava ansiosamente o Natal para pedir ao Pai Natal! Dificilmente eu pedia
abertamente à minha mãe fosse o que fosse, mas ela adivinhava pelas referências
que eu ia fazendo às meninas da sala de aula que já tinham este ou outro
material escolar!
Aquele Natal foi
deliciosamente diferente! Permaneceu doce na minha memoria até aos dias de
hoje! Como sempre fazíamos, ainda a noite ia a meio e, devagarinho,
levantávamo-nos e graciosamente encaminhávamo-nos até à cozinha onde sobre cada
um dos nossos sapatitos estava a prenda do Pai Natal que nunca conhecêramos mas
que, com toda a certeza, existia porque só ele era dotado de tanta generosidade
numa casa que não sendo pobre, também não podia esbanjar o magro ordenado de um
funcionário publico em "coisas sem utilidade"!
Vivi esse Natal de
menina de forma tão alegre que ainda hoje o transporto nas memorias coloridas
da minha infância!
E que me trouxe o Pai
Natal? Que resposta me deu ele ao pedido que lhe fiz em silêncio, na intimidade
da minha cama e na solidão do meu quarto?
Uma caneta de tinta
permanente! Fiquei tão feliz, tão agradavelmente preenchida que passei, sem
fazer muito barulho, pelo quarto dos meus pais e disse para a minha mãe que
acordara com os nossos passos: "Vê, mãe não me deu a caneta e o Pai Natal
trouxe-ma no sapatinho!" a minha mãe respondeu-me: "Que bom...agora
vai dormir! Até amanhã!"
E fui dormir... sempre
com a caneta de tinta permanente agarrada nas minhas mãos que mais tarde iriam
desenhar com letra redondinha a copia ou a composição, pois afinal as carteiras
da escolas já tinham o tinteiro para eu encher de tinta a prenda que o Pai
Natal tinha, generosamente, escolhido para mim!
Volvidos muitos anos
relembro com redobrada saudade aqueles tempos em que o cinzento de uma caneta
de tinta permanente preencheu desejos cumpridos pelo Pai Natal em que eu,
maravilhosamente, fui acreditando até muitos anos mais tarde!
Amanhece em frias manhas
de Outono! Percorro o caminho da minha infância e das vivências com o avô Manel
e a avo Maria! Dirijo-me para a escola pelo verde dos campos onde outrora
brincara e fora animadamente uma miúda feliz! Os avos há muito partiram...os
pais, esses partiram recentemente! A caneta de tinta permanente deverá estar lá
para casa dos meus pais...que eu não ainda não sei revisitar!
Corro para a escola onde
me esperam meninos dos nossos tempos! Pelo caminho o cheiro das uvas americanas
que a infância fez permanecer em mim...até aos dias de hoje!
Que bom estes brilhos de
memoria...este encanto do Pai Natal...este Outono que mesmo frio não regela
emoções!
Que bom...
Lola