Amigo
O que é e para que serve um amigo?
Às vezes, as amizades inquebrantáveis vêm a
revelar-se mais frágeis do que se poderia pensar, deixando a sensação de impotência,
perplexidade e frustração.
A amizade é uma das vertentes mais
importantes das relações interpessoais. Podemos dar-nos com muita gente no
decurso da nossa vida profissional, de vizinhança, comercial ou em vários
contextos, mas a amizade é diferente: obriga a um aprofundamento das relações,
a um tempo de conhecimento e de aprendizagem, a uma exigência maior em rigor e
qualidade, a critérios mais finos para “passar a malha”. De igual modo,
força-nos a uma entrega e a um investimento muito maiores nas componentes do
“dar” e do “receber”.
Os amigos representam, para as crianças (como
para toda a gente, aliás), a segurança de que se é querido e que se tem,
também, objetos e alvos para o amor. Os amigos obrigam a prescindir de parte da
vertente egoísta da pessoa, a fazer sacrifícios e a partilhar e ter sentimentos
“vivos”, como a alegria ou a tristeza, a realização e, quantas vezes também, a
desilusão. Compartilhamos os sentimentos dos nossos amigos e sentimo-nos
tristes quando eles estão tristes, e alegramo-nos com os seus sucessos. Este
desenvolvimento de empatia é necessário para criar pessoas e cidadãos estáveis,
altruístas e humanistas.
Ter amigos é ter também alguém com quem nos
podemos realizar, através das vidas deles, enriquecendo-nos constantemente – ao
vivo, e não nas inefáveis redes sociais.
Para a criança, um amigo é uma segurança, é
um recurso para os momentos piores – verbalizar os problemas e “desabafar” são
fatores protetores ao longo da vida, permitindo muitas vezes a resolução dos
problemas. Para lá de serem, ainda, apoios nas brincadeiras, na descoberta e
exploração do mundo e na vida relacional, os amigos também nos sabem dizer o
que vai mal e está errado connosco – devem, aliás, ser os nossos mais “ferozes”
críticos –, ajudando-nos a descobrir-nos a nós próprios, nas nossas
potencialidades, mas também nas nossas limitações. Ter amigos é uma coisa que
deverá perdurar pela vida toda e mais vale poucos e bons do que muitos e
assim-assim ou do que milhares de pseudoamigos no Facebook, Instagram ou
WhatsApp.
Quando a amizade mais sólida é quebrada…
Às vezes, as amizades inquebrantáveis vêm a
revelar-se mais frágeis do que se poderia pensar, deixando a sensação de
impotência, perplexidade e frustração. A tendência natural será culpar o outro,
e descobrirmos que, afinal, nos enganámos acerca daquela pessoa. Mas será assim
tão simples? Duvido que, na maioria das vezes, o seja. Assim, é essencial
desenvolver um processo mental de reflexão, a frio, para procurar ver porque é
que isso aconteceu. Que motivos levaram um amigo a negar (provisória ou
definitivamente) uma amizade? Teria sido um excesso de expetativas, nunca
realizáveis? Teria sido uma ilusão que, mais tarde ou mais cedo, acabaria por
revelar a evidência? Terá sido apenas um abanão que está a ser, por motivos
intrínsecos ou exteriores, maximizado e exagerado? Será que a “Dona Emoção”
está a asfixiar completamente a “Dona Razão”? Seja como for, compete aos pais
ajudar a criança a decantar o problema, analisando os vários comportamentos e tentando
ver o que correu mal e se isso é ainda reversível. Se a criança fez algo de
errado – mesmo que, a princípio, lhe seja sempre muito difícil assumir –,
deverá ter consciência disso e pedir desculpa aos amigos. Estes, se forem
verdadeiros amigos, desculparão e perdoarão (o que são coisas diferentes,
note-se!).
Se a resolução da questão for impossível,
vale a pena ajudar a criança a aprender os ensinamentos desse episódio, sem
minimizar o sofrimento (porque foi uma perda importante e tem de ser sentida), mas
de modo a que não perdure – novas amizades virão, e dessa que acabou há que
retirar todos os ensinamentos, designadamente o que esses amigos nos ajudaram a
melhorar o nosso eu.
Amizades duradoiras?
Na infância há amizades muito fortes, mas que
têm tempo limitado e que acabam, por exemplo, de um ano letivo para o outro,
mesmo que, passados anos e anos, se ache graça a revê-las, porque há
sentimentos de pertença e uma série de códigos, histórias e “estórias” em
comum.
Todavia, uma amizade não se força: desen-volve-se,
vive-se, aceita-se, sofre-se com ela, partilham-se momentos bons e outros menos
bons, e não deve ser obrigatória. Se não toleramos certas coisas a “amigos” é
porque, provavelmente, não serão tão amigos como isso. A verdadeira amizade é
um relacionamento de verdade, partilha, respeito e aceitação. Os nossos amigos
são como são, e tentarmos constantemente mudá-los para serem da maneira que nos
convém mais é não ter a noção da autonomia e do respeito que a amizade deve
manter – e da identidade individual que as pessoas devem manter, seja numa
amizade, seja numa relação de tipo conjugal, por exemplo. Se a amizade resiste
à diferença, então as pessoas nela incluídas são mesmo amigas. Talvez por isso
tenhamos poucos amigos a sério. Outra coisa são conhecimentos, “amigalhaços”,
colegas…
Como poderão os pais intervir bem?
Os pais não devem criticar demasiado os
amigos nem os grupos de pertença, embora possam analisar com os filhos algumas
atitudes de algumas pessoas, e as dos filhos com essas pessoas. A amizade tem
de ser compreendida no seu contexto e é um misto de lucidez e de emoção. Não
podemos deixar que a lucidez nos dê demasiada racionalidade e intolerância, mas
também há que sermos objetivos, até para ajudar os amigos quando temos de os
criticar ou admoestar. Os pais podem ser solidários e interessados nos amigos
dos filhos, mas têm de deixar uma reserva de intimidade a estes, porque não é
necessário expor tudo na “praça pública”.
Os amigos são como nós próprios – é o que nos
faz viver grandes entusiasmos e grandes deceções, alegrias e tristezas. Há quem
prefira nunca se expor ou dar, com receio de poder vir a sofrer. Essas pessoas
poderão conseguir esse registo, mas perderão também grandes emoções e paixões.
O balancear do pêndulo é uma vertente da vida, que há que viver plenamente para
nos sentirmos cada vez melhores e cada vez mais aperfeiçoados, tolerantes,
humanos e completos.
P. S. Nas muitas aldeias periféricas ao local
onde passei férias, havia festa quase todos os dias. Os foguetes lá estavam,
diariamente, a par da música. O meu cão ficou a pensar se não haveria um agente
da autoridade nesses bailaricos? É proibido lançar artefactos pirotécnicos
neste agosto… e os guardas presentes nessas festas? Não intervêm? Ou só
intervirão quando a aldeia estiver a arder?
31 AGOSTO, 2017 - JORNAL I
Crónica do Pediatra Mário Cordeiro
Lola