Prazeres da vida
As coisas que mais
prazer me deram na vida
Agrafar mais, carimbar mais, vestir a
camisola do Benfica aos quinze anos no primeiro treino, as Variações Goldberg,
chegar da mata em Angola, os primeiros passos da minha filha Zézinha, eu a
ensinar a Isabel a ler, o meu primo António a explicar-me Se a mãe sêsse o pai
puzia gravata, um abraço do meu tio João Maria, o meu pai a deixar-me
Agrafar, carimbar, cortar uma página pelo picotado, fazer buraquinhos numa
folha com aquela maquineta de fazer buraquinhos, o palrar de um bebé, calar de
súbito o som a meio de uma ária de ópera, esmagar as bolhinhas de uma folha de
plástico transparente, ver da janela, lá em baixo, o primeiro pássaro da manhã,
olhar o retrato do Papa Inocêncio de Velázquez, meter na boca um pé de criança
de três meses, uma finta de Garrincha na televisão, o sorriso súbito de certas
mulheres, um sino de aldeia ao fim da tarde, as luzes de Beja à noite na
planície, a Serra da Estrela vista da varanda dos meus avós quando eu tinha
cinco anos, a minha filha Joana, pequenina, a desenhar a sua primeira árvore, o
meu avô a fazer-me uma festa comigo quase a adormecer, o tenente, quando eu era
cadete, a ordenar a Marcha lento e à vontade, um pirilampo no quintal a meio da
noite, a voz da minha mãe a recitar António Nobre, um gato caminhando
devagarinho no muro da buganvília, montar uma zebra de pau no carrossel do
oito, dizer gosto de ti para um rosto que aumenta, os olhos azuis da Avó
Querida quando me chamava meu amor, agrafar mais, carimbar mais, uma mulher a
murmurar Meu Deus na almofada, o pneu afinal não ter furo nenhum, o médico
junto à minha cama Vou dar-lhe alta, um falcão a passar junto à janela, o
guardanapo com uma rã a saltar ao eixo, começar a ver o fundo do prato quando
me davam sopa, beber água da bilha na casa de Nelas, a campainha do recreio a
meio de uma frase do professor de Matemática, a primeira vez que dancei de cara
encostada com uma menina de treze anos também, o palhaço que me apertou a mão
no circo, a tia Madalena para mim Estou aqui filho comigo com a tuberculose, o
raio verde no Caramulo, agrafar mais, carimbar mais, vestir a camisola do
Benfica aos quinze anos no primeiro treino, as Variações Goldberg, chegar da
mata em Angola, os primeiros passos da minha filha Zézinha, eu a ensinar a
Isabel a ler, o meu primo António a explicar-me Se a mãe sêsse o pai puzia
gravata, um abraço do meu tio João Maria, o meu pai a deixar--me ganhar-lhe uma
corrida, o meu irmão Pedro a contar Já vou no Pardal de regresso de uma aula de
Catequese sobre o Espírito Santo, o primo Alfredo que me levantava acima da sua
cabeça e eu maior do que toda a família, a minha mãe perfumada com Chanel
número cinco, a Gija a coçar-me as costas antes de me vestir o pijama, a
professora de Português, no primeiro ano do liceu, a apontar-me à turma Este
menino vai ser um grande escritor e eu feliz, a primeira vez que li A Ruiva de
Fialho de Almeida, o sabor da minha boca depois de um rebuçado de hortelã
pimenta, a cor do mar da Praia das Maçãs às seis da tarde, receber uma carta de
Céline quando lhe escrevi aos quinze anos, o dia em que o Cifra me veio dizer
que tinha uma filha e fui chorar de felicidade e raiva para o arame farpado, os
meus pais terem-me encontrado quando me perdi em Veneza aos sete anos junto a
um dos leões de pedra na Praça de São Marcos, o meu avô a murmurar Meu netinho
acariciando-me o pescoço, beber água da bilha, o primeiro dente de leite que
descobri de manhã na almofada, a esperança de voltar a ler As Aventuras De Dona
Redonda E Da Sua Gente, a minha pilinha de repente grande e eu cheio de orgulho
e vergonha, com a minha mãe a fingir que não via, o tio Joaquim a levar-me até
aos Correios, na Beira Alta, no quadro da bicicleta, o palhaço pobre que me deu
um passou bem no circo, comer cocada de Belém do Pará feita pela tia Isabel, eu
em Paris à procura da cegonha que me tinha trazido dali para Lisboa sete anos
antes: ainda não perdi a esperança de a encontrar e de certeza que ela se
lembra de mim, acho eu. Ter feito chichi em Nova Iorque ao lado de Mickey
Rooney. Cortar, mal acabe isto, todas as páginas do bloco pelo picotado. Acho
que devo ter por aí uma dessas coisas de fazer buraquinhos: que mais pode um
homem desejar?
António Lobo Antunes
(Crónica publicada na VISÃO 1289 de 16 de novembro)
Lola