terça-feira, 2 de maio de 2017

Desejo, vontade e culpa


Desejo, vontade e culpa
Trair é um verbo que se conjuga desde sempre. Envolve três sujeitos: traidor, traído e amante. 
E qualquer um de nós pode ser qualquer um deles

A vida cabia toda numa mesa. Numa pequena mesa de cozinha. Em cima dela, os brinquedos da filha mais nova, o computador e o telemóvel, sempre com o ecrã virado para baixo. Cada objeto é o símbolo das três vidas de João: a familiar, a profissional e a secreta. Aquela que nunca julgou ter. A que o fazia revelar um eu diferente. A que lhe provocava um conjunto de sensações avassaladoras. Desejo. Vontade. Culpa. Todas as vezes que o telemóvel vibrava, os três sentimentos atingiam-no de rompante. Era a hipótese de consumar um desejo carnal que lhe fazia o coração disparar. As mãos suavam. Rejuvenescia com aquele segredo vivido a dois. João tinha muita vontade. Cada vez mais vontade. O desejo alimentava o secretismo que, por sua vez, alimentava o desejo. Um ciclo vicioso.
O frisson da hipótese de um beijo prevaleceu sobre o medo de colocar em risco todas as certezas da vida. “Só pensava que podia ser bom e que se não experimentasse ia ser das coisas de que me arrependeria no leito da morte. Era estranho porque tinha tudo para ser um homem feliz”, recorda com alguns remorsos. Passaram sete anos desde o dia em que com uma mensagem no Facebook iniciou uma relação extraconjugal. Ainda se atrapalha a explicar o porquê daquela traição que durou quatro anos.
“Acho que a questão não é porque traímos. É antes porque colocamos a bitola de uma boa relação na ausência total e absoluta de interesse por outra pessoa. É isso que dizemos muitas vezes, se estamos atraídos por alguém é porque as nossas relações não estão a funcionar. No entanto, se olharmos para os estudos e se virmos que entre 30% a 60% dos casais traem ou são traídos, vemos que estamos a pôr uma expectativa ilusória nas nossas relações”, afirma Luana Cunha Ferreira, psicóloga, terapeuta familiar e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
Mas como se define infidelidade? É uma noite de sexo ocasional sob o efeito do álcool? Um encontro com uma prostituta? Uma troca de mensagens picantes com alguém que se conheceu online? Uma relação física com um colega de trabalho que se mantém durante uns meses? Uma paixão platónica?
Primeiro — enquanto João e a amante se limitavam a trocar mensagens —, era como se não fosse uma coisa real. Não era a traição que a literatura e o cinema diabolizaram. “Era só um flirt. A possibilidade de algo acontecer era o mais excitante. Para mim, não era ainda uma traição.” Isso só aconteceu no dia em que consumou os desejos, em menos de meia hora de sexo, dentro do carro dele, num parque de estacionamento vazio. Nem a hormona da vasopressina, que se associa à lealdade e surge na fase da pós-paixão, o segurou.

“Cada casal é um planeta. Há pessoas que consideram traição só quando se envolvem com outra pessoa; outras consideram traição só o ver pornografia, individualmente, e aqui não há nada de físico e também não há nada emocional. Mesmo assim há muitos casais que dizem que isto é traição porque ela ou ele foram buscar prazer a outra fonte. Já para outros casais isto é ridículo porque só conta quando se envolvem emocional ou fisicamente com outro. Há pessoas para quem o flirt não é traição, desde que a conversa mantenha um certo nível”, sublinha Luana Cunha Ferreira.
Cada casal é um planeta e, por isso, cada casal define as fronteiras da sua fidelidade. E define se a traição — ou a traição que conta para colocar em risco a relação — é física (consumada com sexo); emocional (em que há uma ligação afetiva com a terceira pessoa); física e emocional; digital (feita à distância através das redes sociais); ou se até o pensar em outra pessoa conta. Cada indivíduo pode definir até que ponto deixa a alquimia do desejo mexer consigo.
João pensava, a princípio, que ia mexer pouco consigo. Sentia-se como se estivesse a fazer um intervalo na vida, a voltar aos tempos sem preocupações. Ia descobrindo coisas novas em si, talvez algumas já ele tivesse vivido. Não tinha ainda percebido que a raiz dos primeiros olhares cúmplices que trocou com a amante há muito fora plantada e alimentada. O divórcio nunca foi coisa que lhe passasse pela cabeça. Era com a mulher que tinha filhos, dividia as contas. Era ela a melhor amiga, a primeira pessoa com quem desabafava dos problemas. Ela era a cola que o unia ao seu mundo. “A fidelidade é um contrato social. Entre outras cláusulas está estabelecido que o sexo seja só entre aquelas duas pessoas. Só que a nossa natureza não é monogâmica. Somos educados para isso como somos educados para a heterossexualidade”, defende a sexóloga Vânia Beliz.
Atualmente, somos mais monogâmicos em cada relação que temos, do que monogâmicos toda a vida. É o fruto da evolução da sociedade. “A ideia de exclusividade que vigorou até ao século XX está a ser posta em causa. Mas noutras culturas não existia como existiu na nossa”, frisa Pedro Frazão, psicólogo e terapeuta familiar.
No fundo, João confessa que a ideia de só dormir com uma pessoa até ao resto da vida pertencia a um universo mais distante. Sabe bem que o affair abalou o casamento. Mas as maiores reflexões só vieram no fim. Na altura em que se voltou a sentar em frente à mesa da cozinha e a colocar lá em cima todas as vidas. Viu e reviu as mensagens. Voltou a muitos momentos que tiveram a dois. Disse, para si próprio, que aquilo significava nada. Por nenhum desejo deste mundo, valeria a pena perder o valor emocional de uma relação de 15 anos. Apagou o número da amante e nunca mais falou com ela. Ficaram para trás quatro anos de uma relação que nasceu com uma mensagem de Facebook: “Ficas a matar com essa roupa.” Frase feita de engate que ela gostou de ouvir. Nunca tinham tido uma conversa a dois, mas trabalhavam juntos há um par de anos. Ela sabia como era a vida dele, mas respondeu. Um smile. E ele quis saber o significado do smile. A sete secretárias de distância, a conversa disparou rápido para a parte sexual. “Nunca me vou esquecer, da alegria, da juventude que foi dar o primeiro passo”, recorda. Naqueles segundos em que escreveu e carregou no botão enviar não ficou preocupado que a mensagem pudesse ser considerada assédio. E também não lhe passou pela cabeça que ela não gostasse.
Do Facebook passaram para o e-mail do pessoal. Uns meses a revelarem fantasias. Ela a sentir-se desejada. Ele a sentir-se mais novo. A andar atrás no tempo, aos dias em que não tinha preocupações. Naquelas conversas não era o homem que dormia poucas horas por causa da filha bebé, nem era o homem que atravessava Lisboa a correr para ir buscar o filho mais velho à creche. Nem estava preocupado com a concorrência no trabalho. Nem com os prazos. E João gostava dessa pessoa. Os problemas só vinham quando se via ao espelho. Quem estava refletido no vidro: o pai de família ou aquela pessoa que fantasiava em chegar ao pé da amante, no meio de toda a gente, tirar-lhe as cuecas e fazer sexo ali. Desculpou-se sempre da mesma forma: havia qualquer coisa que faltava no casamento.
A ORIGEM DA CULPA

A culpa não morre solteira e problema está sempre no outro. “Muitas vezes, quase sempre, é sinónimo de que algo não está bem. Agora, não tem de ser na relação. Pode ser algo na própria pessoa. Dificilmente é algo com o meu parceiro, as pessoas põem muito a culpa no parceiro mas é mais uma coisa connosco, uma pesquisa por nós. Nós queremos muito libertarmos nos daquilo que queremos ser naquela relação. Mais do que a relação propriamente dita. Nós não queremos é ser a pessoa que somos naquela relação. E cai alguém na sopa e experienciamo-nos como éramos antes desta relação”, explica Luana Cunha Ferreira. Faz parte do ser humano colocar o ónus na outra pessoa. É o amante que é extraordinário e, por isso, se cai por ele. É o parceiro que é um idiota e, por isso, é que nos afastamos dele. É relação que já está rotineira, já morreu e para isso é que se procura uma alternativa. E, no entanto, a decisão de trair é individual. Não é o casal que decide trair. É o traidor que atravessa a linha e vai à procura de outro.
Ao consultório de Luana Cunha Ferreira chegam casais felizes e infelizes, com vidas sexuais razoáveis e até muito boas. Trair não é — ao contrário do que se costuma dizer — um sinónimo de vida conjugal infeliz. “Recebo os três [traidor, traído e amante], individualmente ou em casal, e são pessoas iguaizinhas a nós. Isto pode acontecer a qualquer um. Claro que cada um de nós tem limites diferentes, ao nível da moralidade, ao nível da forma como nos apaixonamos ou desapaixonamos por outras pessoas; com o nível do desejo. Mas isto pode acontecer a muita, muita gente”, frisa.
Miguel e Marta procuraram a terapia. Aparentemente, tinham tudo para resultar. Ela é o protótipo da mulher bonita, nove anos mais nova do que ele, e até com mais vontade de ter relações sexuais. Os amigos sempre o acharam um homem de sorte. Ele também. O nascimento da segunda filha desequilibrou a casa. Marta andava mais ocupada com as crianças, com menos paciência para ele, deprimida por não conseguir amamentar. Ele focou-se no surf, hobby a que começou a dar mais valor do que à profissão. Um dia, conheceu uma pessoa durante uma viagem trabalho e descobriu uma data de coisas que não sabia sobre si. Afinal, também era capaz de pensar em estar com outra pessoa. Na realidade, até queria. Muito.
Quando regressou a casa, entre as fraldas e biberões de uma parentalidade que ele não desejara, e uma relação em que se sentia encurralado, decidiu que o escape talvez estivesse ali, naquela mulher, que não era tão bonita como a sua, mas parecia tão mais disponível. Sentado na sala, já a noite ia avançada, colocou também ele a vida em cima da mesa. Estavam lá, os livros de colorir da filha mais velha, o papel e caneta onde escrevia um poema para ser lido no batizado da filha mais nova e o computador. A televisão, sem som, fazia companhia. E ele mandou o primeiro e-mail. Tudo muito claro e carnal. Não havia frases de engate, nem mensagens subliminares deixadas no ar, muito menos sugestões do que aquela relação poderia um dia, eventualmente, vir a ser.
Todas as noites, era como se Miguel saísse do seu eu e entrasse num outro que afinal também era o dele. “O nascimento da segunda bebé foi difícil, porque já era difícil criar a mais velha e foi a Marta que se fartou de insistir para termos um segundo filho. Mas eu sentia um peso enorme e que não era a melhor altura.”
A mulher cedo percebeu que se passava alguma coisa, mas não o quê. Uma noite, em que por motivos diferentes nenhum dormia, sentou-se e quis falar com ele. Miguel não lhe revelou o que sentia. “Achei que o pior seria sempre contar.” Ela só descobriu quando, desconfiada, lhe acedeu à conta de e-mail. Um rol de mensagens sexuais, sem sugestões de que tivesse existido qualquer encontro, escondidas numa pasta com o nome X, davam-lhe uma versão diferente do marido. Era uma realidade que nunca pensou encontrar, mas também ela já tinha despertado a atenção para um homem mais velho que conheceu no Twitter. Só não percebia como é que isto acontecia se até era ela quem tinha vontade de ter sexo mais vezes. Discutiram violentamente nessa noite. Mas Marta decidiu que se nada tinha sido consumado era como se tudo tivesse sido um equívoco. “Até achei que fosse um alerta, que qualquer coisa boa pudesse surgir dali.” Era uma espécie de alerta.
A relação sobreviveu mais dois anos, com terapia, e com mais baixos que altos. Terminou, definitivamente, quando Marta teve relações sexuais, ocasionalmente, com outro homem. Nenhum dos dois estava disposto a continuar depois daquilo. O fim de um casamento que parecia perfeito chocou a família e os amigos, mas não os próprios. O desejo por outras pessoas foi apenas um sinal. Havia algo (muitos algos) que não estavam bem naquela relação. “Eram muitas questões, não vale a pena mexer sobre elas. Mas também tenho a certeza que cada um de nós acha que o problema está no outro. Eu — só agora — admito que, talvez, houvesse também um sinal de que algo não estava bem comigo.” Miguel ainda pensou em contar. Está convicto que a teria magoado menos. “Depende para que serve o contar. Se resulta de uma reflexão ou se é uma atitude que se refere ao próprio. É alguém que se coloca na posição do outro [o traído]? Ou alguém que tem medo de perder a outra pessoa?”, diz Pedro Frazão.
Talvez sabendo, a ex-mulher de Miguel não falasse hoje dele com tanta raiva. Marta define a guarda partilhada como complicada e, agora numa união de facto, aponta o dedo ao ex-marido. Afinal, ela considera que lhe deu tudo o que ele poderia desejar. Antes de assinarem os papéis, ainda fizeram uma maratona de um mês de relações sexuais, na esperança vã de que mais sexo lhes trouxesse a reconciliação. “O sexo é uma coisa muito primária, muito instintiva. É diferente de amar. O sexo não é o mais importante de uma relação. é muito importante, mas o mais importante é um conjunto de fatores que têm de ser tidos em conta, como planos de vida e objetivos”, defende a sexóloga Vânia Beliz.
DEPOIS DA CRISE, A BONANÇA

Nem a falta de sexo é a razão do problema. Muito menos a solução. É duro, mas é possível que se consiga obter algo bom de uma traição. Depois do choque da descoberta, entra-se numa fase parecida com o luto em que o choro e os gritos também são necessários. “Ainda estou para ver — e falo pela minha experiência clínica — uma traição que melhore essa relação. Pelo menos a nível imediato. Se calhar, não estavam a trabalhar na relação, ela/ele desinteressou-se, ela/ele envolveu-se com um terceiro, alguém descobriu ou contaram. Houve uma grande crise, grande, grande, e com terapia ou sem terapia, descobriram tantas coisas nessa crise que depois ultrapassaram e tornaram-se um casal melhor. Isso aí estou farta de ver. Agora, simplesmente ir ali buscar uma traição, buscar um terceiro, colocar o terceiro na relação, e isto vai melhorar a minha díade. Isso pode acontecer, mas na minha prática clínica não é muito comum, mas vejo muitos casais que acharam que era assim e fizeram com esse propósito ou aparentemente com esse propósito. E correu mal”, frisa Luana Cunha Ferreira.
Miguel foi um pouco com esse objetivo. Achou que uma relação extraconjugal platónica fosse uma solução. Magoou a ex-mulher, a amante e magoou-se a si próprio. É raro alguém sair incólume. “Só as pessoas que têm capacidade de compartimentar. A vida dupla gera muita ambiguidade. E mesmo quem consegue compartimentar a vida, também não consegue viver assim de forma tão compartimentada. Ninguém aguenta assim tanta ambiguidade. Acaba por ter de ser necessário decidir”, sustenta Pedro Frazão.
João escolheu a mulher. Miguel foi empurrado a escolher o divórcio, mas hoje, olhando para trás, teria tirado de cima da mesa da sala o computador. Ou teria chamado Marta ainda com o computador aberto em cima da mesa. O desfecho do casamento, provavelmente, seria o mesmo, mas não teria havido tanta mágoa e sofrimento. E tanta culpa. “O traidor tem sentimentos que, durante muito tempo, foram negligenciados. E tem um sentimento de culpa que não é um sentimento vulgar. É uma culpa muito pesada, muito paralisante, quase física”, afirma Luana Cunha Ferreira. É como se fosse o peso no corpo das ações.
É por isso que na terapia de casal deixou de existir uma barreira que distingue inocentes de culpados. “Já não temos aquela abordagem antiga, do perdão, em que o traidor tem que assumir as responsabilidades todas e pedir desculpa. E coitadinha da ‘vítima’, tem de ser acolhida em tudo e mais alguma coisa. Claro que tem de ser acolhida, mas temos que endereçar os sentimentos do traidor porque senão estamos a pôr uma espécie de penso rápido. E ou vai repetir, ou não vai conseguir lidar com estas emoções todas. É um sofrimento partilhado”, continua a especialista.

O mesmo acontece na Justiça. A Lei do Divórcio de 2008 veio trazer alterações ao direito de família, mas a mais significativa é o fim da culpa nos divórcios litigiosos. Uma figura que desapareceu do atual quadro legal. “Até aí, havia a culpa de um dos membros do casal, quando o divórcio não era por mútuo acordo, que violava os deveres conjugais. Só o podia requerer quem fosse o inocente. Esta figura foi abolida. Hoje, há o divórcio por acordo e sem consentimento, que substitui o litigioso mas sem a culpa”, explica Rui Alves Pereira, advogado especialista em direito de família. Os deveres conjugais, no entanto, continuam a existir: respeito, fidelidade, coabitação, cooperação, assistência. A diferença é que já ninguém pode apontar o dedo ao traidor, obrigá-lo a fazer um tipo de separação, e dizer-lhe que era ele o único responsável pelo fim. “Isto não significa que a traição não seja a principal causa dos divórcios. É quase sempre uma terceira pessoa que aparece na vida”, sublinha.
Essa terceira pessoa, tão diabolizada pela sociedade e, muitas vezes, pelo próprio traidor, não sai isenta da equação. É causa e consequência de um comportamento, de uma situação. “Quantas vezes não conhecemos pessoas assim. Pessoas que ficam à espera de ver se as coisas avançam ou não. Na esperança de ter uma relação afetiva e, às vezes, até acabam por ser enganadas pelos traidores, que até vivem razoavelmente bem com essa situação. Depende da maneira como todos encaramos isto. De como vemos os afetos e a sexualidade”, frisa Pedro Frazão.
Ana esteve nessa posição — que descreve como um limbo — três anos. Foi a outra. Apaixonou-se por um colega que sabia que era casado. Envolveram-se. Nunca se sentaram para conversar sobre o que faziam. Meias palavras deixavam cair a realidade. “Essa semana não posso porque vou de férias. O meu filho está doente, tenho de ir para casa. Não posso ficar a dormir.” Primeiro ela não o quis pressionar. Depois teve medo de o afastar. “Vivia em função dele. Só saía com grupos de amigas. Faço as contas à quantidade de rapazes que me apareceram à frente e aos quais não liguei. Estava demasiado apaixonada.” Um dia, tal como João, ele colocou a vida em cima da mesa e optou. Nunca mais ligou a Ana. Agora, que já lhe investigou a vida, percebeu que teve outras relações antes dela. É um dos tais compartimentados, que separa muito bem todas as faces da vida. “Para essas pessoas está tudo bem, vivem bem assim. É um estilo de vida, não é um problema”, diz Luana Cunha Ferreira.
Quando se divorciou, Miguel chegou a sair com a rapariga com quem trocou mensagens. Fora das redes sociais a relação não pegou. João diz que não hesitou na hora de optar. Mas houve um momento em que, de repente, “estava a gostar de duas pessoas”. Dividido entre uma relação de amizade e amor e a paixão que o libertava de tudo. Por breves momentos, numa contradição com tudo o que exprimia e o cérebro lhe dizia, colocou de novo a vida toda em cima da mesa. Continuar o casamento, a relação que tinha construído ao longo de tantos anos, ao pé de quem tinha projetado a vida, com quem dividia as contas, as responsabilidades. Ou escolher a terceira pessoa, por quem sentia um carinho especial. Recomeçar com aquela que, agora, era quem o fazia mais feliz. “Perguntei-me se era possível gostar de duas pessoas ao mesmo tempo.”
Há dois meses, num texto sobre o amor, aqui na E, o psicanalista Coimbra de Matos foi perentório: “Embora seja cultural, o ser humano é bastante exclusivo. Somos predominantemente monogâmicos, mesmo que seja uma monogamia serial, temos um parceiro de cada vez. É difícil gostar de duas pessoas ao mesmo tempo. O que é possível é ter relações parciais.” Numa entrevista, um mês mais tarde repetia: “O amor é bastante exclusivo. Embora isso seja também uma coisa cultural. O homem é fundamentalmente monogâmico. E a mulher mais que o homem. Há um problema que também tenho estudado, a relação tem de ser criativa. Se vão sempre jantar ao mesmo restaurante, se vão sempre ao cinema, com os mesmos amigos, a relação torna-se monótona, chata. Tem de haver inovação, temos necessidade de coisas novas. A monotonia mata.”
Até aqui, traição era um verbo que se conjugava no masculino. Com a biologia e o machismo a darem carta branca aos homens. “É verdade que pomos a mão no meio das pernas de um homem e ele fica excitado. É biológico. Mas isto não quer dizer que ele esteja sempre com vontade. Durante a ditadura, que não foi assim há tanto tempo, era aceite que os homens pagassem para ter sexo”, frisa Vânia Beliz.
A duplicidade de critérios é tão antiga quanto o adultério. Os casos que chegam aos consultórios de terapia familiar dizem que a realidade está a mudar. Eles continuam a trair, elas estão a trair mais, ou a admitir mais que estão a trair. Mas não se está a trair menos. Mesmo que o casamento seja mais fácil de terminar e que a sociedade se esteja a adaptar às famílias recompostas (os meus, os teus e os nossos).
É perigoso, mas quase se pode dizer que trair faz parte de amar. Porque só trai quem, um dia, já amou. E é só quando se coloca a vida em cima da mesa — se pesam e juntam todas as componentes da vida — que se descobre quem se ama mais. Ou que tipo de vida se ama mais.
In Expresso

01.05.2017 às 13h00

Lola