Ler a vida
Sandra vai dar a
volta ao mundo para celebrar a vida e fotografar quem lê
A 16 de Abril de 2004, Sandra
Barão Nobre fez um autotransplante de medula óssea após uma leucemia aguda. Uma
década depois celebra esta “segunda oportunidade maravilhosa de estar viva”.
Uniu duas grandes paixões, as viagens e os livros, e vai realizar um sonho
antigo: dar a volta ao mundo, fotografando leitores.
“O que é que te impede?” A
pergunta do irmão, feita há precisamente um ano, foi o empurrão final. Tinha disponibilidade
financeira, a possibilidade de pedir seis meses de licença sem vencimento e no
blogue Acordo Fotográfico, criado há dois anos, o mote
para uma viagem especial. “Queria, acima de tudo, festejar estes dez anos do
autotransplante, celebrar a vida e juntar o facto de ter um blogue que me tem
dado imenso prazer alimentar”, conta Sandra Barão Nobre à Fugas. É que desde
Dezembro de 2012 que esta portuense anda a fotografar os estranhos que encontra
a ler em locais públicos.
“Gosto muito de livros, leio
muito, gosto muito desta posição da pessoa estar a ler e sempre me chamou muito
a atenção, até tentava espreitar para ver qual era o livro, saber se estava a
gostar”, conta a gestora de conteúdos online da livraria Wook. Adicione-se-lhe
o interesse pela fotografia, a paixão pelo retrato e a vontade de “quebrar a
rotina e conhecer mais pessoas”. Assim nasce o Acordo Fotográfico, numa
analogia ao mais polémico ortográfico. Agora Sandra acrescenta um novo capítulo
à narrativa: as viagens. Porque, declama na suapágina de Facebook as palavras de Paulo Leminski: “Viajar me deixa/
A alma rasa, / Perto de tudo, / Longe de casa”.
Volta ao mundo em leitores
A terra do poeta brasileiro foi precisamente a
primeira paragem de um périplo de seis meses por quase todos os países onde se
fala português (Guiné-Bissau fica de fora por questões de segurança) e outros
tantos do Sudeste Asiático. Se tudo correr conforme planeado, estará agora por
Timor-Leste, onde quer comemorar o “décimo aniversário do autotransplante”.
Curiosamente o país “onde mais queria chegar”. “Quando se começou a falar de
Timor em 1990/1991, tinha acabado de entrar para a faculdade e vivi tudo isso
muito intensamente”, recorda. “Parece-me absolutamente incrível que possa ir lá
agora”.
De sorriso largo e cara de menina, Sandra confessa
ainda ficar “meio vermelhusca” quando aborda os leitores desconhecidos que
encontra, mas acredita que não é mais difícil no estrangeiro. Numa viagem a
Macau no ano passado (onde regressa agora), fotografou um leitor no Jardim Luís
de Camões que não falava português nem inglês. “Foi tudo por gestos, não deve
ter percebido para o que era e até hoje não deve saber o que fiz com a
fotografia”, recorda a portuense de 41 anos.
Por todo o lado, tem a esperança de encontrar
leitores, desde os sítios mais comuns aos lugares mais exóticos. “Quem é que
será que posso encontrar a ler no Cambodja? Será que encontro alguém a ler num
daqueles templos fabulosos ou perto de um campo de arroz?”, sonha Sandra,
embora acredite vir a encontrá-los nos sítios mais prosaicos, como uma paragem
de autocarros ou um hostel. O importante é que “contem boas histórias e que sejam
pessoas simpáticas”.
Foi o que aconteceu logo num dos
primeiros dias da viagem, quando “finalmente” encontrou alguém a ler a obra que
“mais queria fotografar”: a Bíblia. Em frente à Igreja do Senhor do Bonfim, em
Salvador da Bahia, o taxista Albérico lia “o livro dos livros” enquanto
esperava pelo próximo cliente, descreve no blogue. Numa coincidência feliz, o pensamento
daquele dia na pagela do Senhor do Bonfim era uma citação de Mark Twain: “A
pessoa que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre a pessoa que não
sabe ler”.
Um livro redondo
Apesar de ler uma média de 40
obras por ano – o que “não é muito”, garante – a “grande paixão” de Sandra são as
viagens. Já esteve duas vezes nos Estados Unidos, três na Argentina, viveu um
ano no Uruguai, passeou pela Tunísia, Paraguai, Japão ou Malta. Muitas das
viagens inspiradas por livros. Foi a Cabo Verde e a Marrocos por causa de Sul, de Miguel Sousa Tavares, visitou a Patagónia
depois de ler a obra de Bruce Chatwin e leu Um Estranho em Goa,
de José Eduardo Agualusa, quando foi àquela cidade indiana.
No entanto, confessa não ter lido
muito sobre os locais que visita nesta viagem, a ansiedade e o entusiasmo levaram-na
a “perder terreno nas leituras este ano porque não se conseguia concentrar”.
Inspirou-se sobretudo em relatos de “pessoas que deram voltas ao mundo” e leva
um guia sobre o Sudeste Asiático. Mas se São Tomé e Príncipe é um dos países
que aguarda com mais expectativa, deve-o também aos livros. “As pessoas que
conheço e que já lá estiveram dizem que é lindo, muito virgem ainda e pouco
explorado, mas admito que o Equador, de Miguel
Sousa Tavares, que li em 2003 durante umas férias no Brasil, me marcou muito e
fiquei com muita vontade de ir lá por causa desse livro”, conta, entre risos.
Sandra confessa-se viciada na leitura e garante que
quando está muito tempo sem ler fica “rabugenta”. Por isso, quando lhe
perguntamos como vai ser durante a viagem, admite ser “uma coisa que a
preocupa”. “Vou de mochila às costas, por isso não me posso dar ao luxo de
levar muitos livros e também já me tenho perguntado como é que vou fazer porque
da última vez que estive na Argentina vim carregadíssima de livros, mas não
posso fazer isso nem gastar muito dinheiro a enviar para Portugal”, diz Sandra,
reflectindo em voz alta, à procura de uma solução. “Talvez compre um livro de
bolso uma vez por outra e às tantas deixo-o por aí quando terminar. Com muita
pena minha, porque sou obsessiva com os livros”, avança. “Vai ser mais um
exercício de desprendimento”.
Talvez perder os livros, mas guardar para sempre as
histórias e os leitores, seja o preço a pagar por descobrir novos mundos.
In Publico de 16 de
Abril de 2014
Foto João Martins |
Junto ao mar!